Psicanálise e política: Contribuições metodológicas
Andréa Máris Campos
Guerra
Professora UFMG
(aguerra@uai.com.br ).
Aline
Souza Martins,
Mestranda
USP (alinesouza.martins@gmail.com)
Disponível em:
http://borromeo.kennedy.edu.ar/Artculos/CamposGuerrapsicoan%C3%A1lisisypol%C3%ADtica.pdf
RESUMO
Discutiremos elementos conceituais de metodologia
de intervenção junto à prevenção à mortalidade juvenil, decorrentes de
pesquisas. Apostamos que, feito uma banda de moebius (LACAN, 1961), a dimensão
política, determinada pelos fatores materiais e econômicos, e a dimensão
subjetiva, determinada pelo inconsciente, são o lado e o avesso de uma mesma
posição que refere o sujeito ao Outro. É na torção entre os dois planos que os
acontecimentos podem determinar diferentes tomadas de posição. Assim, ambos devem
ser considerados quando de intervenções que visem à inserção de adolescentes
autores de ato infracional. Trabalharemos três elementos: I) a premissa de que
a agressividade pode servir à
destruição, mas também pode ser dirigida à construção
da civilização; II) o “não”, que
caracteriza as formas de resistência ao poder ganha, na psicanálise, uma forma
específica (die Verneinung) que nos leva a complexificar o processo subjetivo aí
presente; III) as formas de resistência política podem também engendrar o novo, produzindo a superação do status quo ou do circuito da repetição,
simultaneamente no plano político e no plano inconsciente. Nessa lógica, o
crime representa a posição de fixar-se na dialética agressividade/idealização
por meio da aderência a semblantes, insígnias fálicas e gadgets ligados ao crime. Enquanto, oficinas culturais – como a de
quadrinhos em nosso caso - pode ser entendida como um ultrapassamento que
poderia transformar o ato agressivo e a repetição alienada em um ato criativo,
com potencial para romper com a posição simbólica que coloca o corpo dos jovens
em direção à morte na “guerra”.
Palavras-Chave:
Adolescência, criminalidade, psicanálise, ato.
INTRODUÇÃO
Nesse artigo, buscamos fundamentar
uma proposta metodológica de intervenção junto a jovens atravessados pela
experiência do crime, em especial o tráfico, com vistas a contribuir com as
propostas públicas de combate à violência e mortalidade juvenis dos setores da
segurança pública e dos direitos humanos. Usamos como estratégia metodológica a
experiência de uma oficina de quadrinhos, realizada junto aos jovens de um
aglomerado urbano, utilizando o aporte teórico da psicanálise aplicado ao campo
político para fundamentar epistemologicamente o método. Para isso, articulamos
noções psicanalíticas a noções políticas.
Valendo-nos de um recurso
topológico, a faixa de Moebius, partimos da premissa de que a dimensão política
e a dimensão inconsciente são os dois lados correlativos de uma mesma lógica de
agenciamento do funcionamento do sujeito no laço social. Nesse sentido, uma
intervenção que opere mudança em um plano acarretaria mudança no outro,
favorecendo a consolidação de novas posições, diferentes daquelas atreladas à
predicação que o crime engendra. Em outros termos, supomos que intervir no
campo político afeta o sujeito, assim como intervir no plano inconsciente afeta
o morador da polis.
Supomos assim que esse movimento,
complexo e moebiano, pode ser pensado a partir de três aspectos
subjetivo-políticos que explicitam os processos políticos e inconscientes em
jogo e permitem, em um outro passo, consolidar um método ainda em construção.
São eles: I) a premissa de que a agressividade
pode servir à destruição, mas também que é necessária e pode ser dirigida à construção da civilização; II) o “não”, que caracteriza as formas de
resistência ao poder ganha, na psicanálise, uma forma específica (die Verneinung)
que nos leva a complexificar o processo subjetivo aí presente. Quando negamos
com veemência uma relação, um objeto, um ideal, pode ser que ele esteja,
exatamente, articulado no plano inconsciente a uma forma de resposta ao desejo;
III) as formas de resistência política podem também engendrar o novo,
produzindo a superação do status quo, rompendo com o instituído e
engendrando algo novo,
simultaneamente no plano inconsciente e no plano político.
A palavra permanece como elemento
central e mediador nas intervenções com vistas ao combate à violência e
mortalidade juvenis, mas carece de ser imbuída, ou a ela agregada, valor
político e carga de afeto, de forma que engaje o sujeito, com seu corpo e com
sua representação na vida da cidade.
A EXPERIÊNCIA DA OFICINA DE QUADRINHOS OU A
METODOLOGIA
A
fim de realizarmos a devolução de dados da pesquisa “A incidência da figura
paterna na subjetividade de adolescentes envolvidos com a criminalidade”
promovemos junto ao Programa de Controle de Homicídios Fica Vivo![1]
uma oficina de quadrinhos com jovens envolvidos com o tráfico em um aglomerado
urbano e central da cidade de Belo Horizonte (MG). No momento da devolução, os
jovens que participaram mais ativamente da fase da coleta de dados estavam
presos, mortos ou foragidos. Assim sendo, a devolutiva aconteceu com um novo
grupo de rapazes, mais jovens, sendo que conhecíamos apenas um deles da fase
anterior, que ocorreu menos de um ano após o fim da pesquisa de campo.
Os
dados referentes à investigação inicial foram coletados através de grupos de
conversações psicanalíticas (SANTIAGO, 2009) em três regiões desse aglomerado,
selecionadas devido à alta incidência de homicídios entre jovens e à
acessibilidade aos pontos de venda de drogas ilícitas, cujo acesso foi
favorecido pela parceria com o Programa Fica Vivo!. Em cada região, os jovens
se alternavam na participação, havendo sempre algumas presenças constantes.
Coletamos os dados durante o segundo semestre de 2010, abordando em cada região
cerca de 15 jovens, num total aproximado de 45. Foram registradas entre três a
cinco conversações em áudio em cada região, a partir de uma dúzia de visitas,
aproximadamente, aos locais selecionados. Os jovens receberam pseudônimos, não
tendo sido identificados, conforme exigência do Comitê de Ética que aprovou a
realização da pesquisa. Esse material gravado foi posteriormente transcrito e
submetidos à análise de discurso, apoiada nas elaborações teóricas de Lacan
(1957), sem perdermos de vista o plano econômico e político da situação.
A
oficina de quadrinhos aconteceu em uma das regiões estudadas com cerca de doze
jovens, com a coordenação de dois profissionais e um aluno da psicologia e dois
artistas quadrinistas. Os encontros aconteciam duas vezes por semana, durante
os dois primeiros meses, semanalmente no terceiro mês, e quinzenalmente no
último, num total de quatro meses de duração. Sempre no aglomerado, o local
variava conforme a atividade, sendo utilizadas prevalentemente uma laje e uma
varanda de duas casas de jovens. Seus procedimentos incluíram a construção do
enredo de uma revista de quadrinhos, com construção dos personagens, story board e trama, tendo sido utilizados recursos como discussão de
filmes, raps, visitas a atelier de
quadrinistas, aulas técnicas de desenho, pesquisas na internet, entre outras.
Esse processo culminou na confecção e apresentação pelos jovens de um vídeo e
da exposição do material visual da história dos quadrinhos em evento
universitário na UFMG. Pois bem, o que essa metodologia nos ensina no trabalho
com os jovens? Antes de respondê-lo, entendamos sua lógica.
A FAIXA DE MOEBIUS OU A LÓGICA DO MÉTODO
Lacan
apresenta a faixa ou banda de moebius em seu seminário “A
identificação”(1961-62), assinalando a divisão do sujeito, que expõe sua dimensão
mais íntima, moebianamente articulada ao campo do Outro, expondo-o no espaço
público. Lacan identifica, assim, o sujeito, entendido como determinado pelo
inconsciente, ao corte que a faixa de moebius apresenta. Em sua essência, a
banda é o próprio corte, podendo, por isso, ser tomada como suporte estrutural
da constituição do sujeito, pensado como dividido por aquilo que ultrapassa sua
consciência. Assim, em sã consciência, um sujeito pode afirmar sua alegre e
orgulhosa certeza pela posição criminosa e, ao mesmo tempo, ter pesadelos com a
cena do crime. Será o elemento temporal que permitirá situar o ponto de corte.
Vejamos sua representação abaixo.

Fig 1. Faixa ou Banda de Moebius
É
na torção, responsável pela inversão desses dois planos, que os acontecimentos
podem determinar tomadas de posição em que os dois lados colidem, interferindo
nas respostas que o sujeito constrói ao longo de sua vida. Nesse corte que
torce a faixa, o lado de dentro torna-se, ao mesmo tempo externo (acompanhem o
trajeto das formigas na figura 1), a partir do ponto de perda que o corte
engendra.
Em
nossa aplicação dessa lógica, a face pública é associada à dimensão política, tomada como teoria
estratégica que trata da finalidade de uma prática discursiva. Enquanto a dimensão subjetiva é tomada na qualidade
de inconsciente estruturado como linguagem. Para os jovens da oficina de
quadrinhos, a dimensão política estaria relacionada a um ato que rompesse o
ciclo repetitivo que os reenvia a posição paradoxal de exclusão incluída,
relacionada à estrutura de poder a qual estão submetidos pelo discurso
capitalista. Na dimensão
subjetiva, porquanto inconsciente, estaria relacionada ao corte que institui um
antes e um depois, modificando a posição do sujeito quanto à forma de obter satisfação
e se posicionar face ao Outro, ganhando valor de acontecimento-sujeito.
Valendo-nos, portanto, da banda de Moebius nas
intervenções com esses jovens, apostamos que haverá sempre a construção de uma
resposta que depende simultaneamente da dimensão subjetiva e política em
questão. O tráfico representaria a posição de fixar-se na dialética
agressividade/idealização por meio da aderência aos semblantes oferecidos pelas
insígnias fálicas e gadgets ligados
ao crime. A oficina de quadrinhos, por outro lado, poderia ser entendida como
um ultrapassamento alternativo que transformaria o ato agressivo e a
repetição alienada em um ato criativo com potencial para romper com a posição
simbólica estabelecida no laço social que os leva muitas vezes à morte na cena da
“guerra”, oriunda de sua inserção no tráfico.
A
FACE POLÍTICA
Faremos uma analogia entre as manifestações políticas
globais, Occupy e Primavera Árabe, e a política local dos jovens de periferia
de Belo Horizonte, representada pelo Duelo de MCs e a Oficina de Quadrinhos.
Nosso objetivo não é descrever em detalhes esses quatro movimentos, mas sim
apontar possíveis aproximações entre as relações políticas encontradas em nível
global e local. O movimento Occupy Wall Street
(OWS) é um protesto internacional contra a desigualdade econômica e
social. Seu principal interesse é denunciar as
grandes corporações e o sistema financeiro global que controlam a desigualdade
na distribuição de recursos. O Occupy começou
pelo grupo ativista canadense Adbusters
e inspirou a primavera Árabe, especialmente os protestos do Cairo na Praça
Tahrir e os Indignados da Espanha, dois movimentos políticos importantes do
mesmo período.
Já os protestos no mundo árabe em 2010-2012,
que também ficaram conhecidos como a Primavera Árabe, são uma onda de
manifestações
no Oriente Médio e no Norte da África quem impulsionaram
revoluções em diversos países, como
Tunísia, Egito, Libia, Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Síria, Omã e Iémen.
As manifestações tiveram início na Tunísia em dezembro de 2010, após o ato de
um jovem comerciante que ateou fogo ao próprio corpo em protesto aos altos
impostos e às más condições de vida no país. Segundo Mark LeVine, autor de Heavy Metal Islam (PERES, 2011), os
protestos políticos no Oriente Médio foram canalizados pelo rock e pelo rap. O
professor da Universidade da Califórnia estava na Praça Tahrir, no Cairo,
durante os protestos que levaram à queda do ditador Hosni Mubarak e defende que
a música antecipou o movimento político.
A
revolução árabe, portanto, foi possível através da indignação social, fomentada
pelas músicas dos rappers, que
comportava um potencial de ato político. Esse ato seria entendido aqui não como
acting out ou passagem ao ato[2],
mas um ato análogo ao ato psicanalítico, porém marcado por efeitos no campo
político. De acordo com uma das leis mais básicas da física Newtoniana é
necessário um montante de energia para colocar um corpo que se encontra no
estado de equilíbrio (inércia) em movimento. Na psicanálise lacaniana, o ato é
usado para produzir respostas novas no sujeito que o tirem da compulsão à
repetição por inserir pontos de indeterminação, “incite uma interpolação da
repetição dentro da transferência” (DUNKER, 2011, p. 330). No plano clínico,
ele pode ser a passagem de analisante a analista, o início de uma análise ou um
tipo de intervenção clínica como a interpretação, construção e manejo da transferência.
Comporta, entretanto, sempre um gesto simultaneamente ético-político (ato
político), metodológico (um fazer) e técnico (uma intervenção) que pretende
fundar o ato verdadeiro, envolvendo a criação de novas coordenadas simbólicas
pela apresentação do real (DUNKER & PROPHETA, 2012).
No
discurso “The violent silence of a new
Beguinning”, Slavoj Zizek (2012) caracteriza os ocupantes de Wall Street
como tão violentos quanto Gandhi por quererem dar um basta no modo como as
coisas são feitas, e acrescenta “mas o que é essa violência quando comparada
àquela necessária para sustentar o suave funcionamento do sistema capitalista
global?” (p. 17). Com a ocupação e o “não”
dos jovens há, pois, a tomada de um compromisso político e com ele a esperança
de que esse ato produza algo novo. Ato agressivo, no sentido de uma força
que é usada para romper com uma posição de equilíbrio, que pode ser visto como
uma das marcas da juventude e da adolescência. No contexto social, esse ato
pode representar um impulso a mobilizações políticas, como a resistência às
ditaduras do Brasil, da Argentina e, mais recentemente, a Primavera Árabe.
Enquanto,
no nível individual e singular, pode implicar um ato por parte do adolescente
que, diante da irrupção do corpo púbere e sua insuficiência em lidar com ele
precisará construir um novo nome para si, uma resposta subjetiva ao embaraço
provocado pelo encontro com a sexualidade. Diante dessa experiência púbere de
reencontro com algo que não tem nome, o sujeito precisará construir uma solução,
uma forma de resposta, elaborada na adolescência. O Nome-do-Nome-do-Nome (NNN)
é uma referência que Lacan (1974) retoma dos hebreus para falar desse
tratamento que damos ao que não se representa, ao que não se pronuncia, como o
nome de YAHVE. Diante disso que ultrapassa a possibilidade de resposta do
púbere, é preciso colocar um ponto, indicar um vetor, a partir do qual ele irá
romper com as relações endógenas da família e procurar no laço social uma
posição para si no mundo dos adultos, no plano da vida pública.
A
revolução da Tunísia começou após a manifestação dramática do jovem que se mata
em praça pública dizendo um não radical
contra as condições de vida às quais estava exposto. Esse triste martírio teve
como efeito mobilizar uma onda de revoltas devido à identificação das pessoas
com as causas que levaram o jovem a sublinhar sua indignação por meio desse
ato. A violência da qual ele se vale, sem mediação, só pode ser entendida como
reação, agora ativa, contra uma agressividade maior que toda a população estava
sofrendo de forma passiva. Portanto, essa passagem, que exige uma mudança de
posição, depende de uma violência inicial com o potencial de romper com o
estabelecido e criar o espaço para que algo novo possa surgir. Entretanto, a
diferença entre o jovem que se manifesta sozinho e os protestos que se seguiram
é uma mediação simbólica da violência do grupo que, pelo laço social, é capaz
de fazer política se protegendo minimamente da autodestruição.
Como
Freud (1933 [1932]) nos lembra, em “Por que a Guerra?”, a violência nua e crua,
física, foi, ao longo do processo civilizatório, sendo substituída pela
superioridade intelectual, assim como a morte do inimigo por sua subjugação e
domínio em vida. A regra do mais forte apenas encontrando oposição na união dos
fracos ou na força da comunidade. A única diferença real entre a violência da
força e a violência da lei residiria no fato de que aquilo que prevaleceria não
seria mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade, cuja
coesão passa, então, a ser necessária (p. 247).
Assim
também podemos entender, analogicamente, os jovens de periferia que muitas
vezes acabam envolvidos pelo tráfico de drogas e pela morte, em busca de uma
mudança de posição subjetiva no cenário público. A violência que os impulsiona
nessa busca culmina, como eles mesmos descrevem, rapidamente nos três Cs –
cadeia, caixão ou cadeira de rodas. Esta via poderia ser orientada como uma
luta legítima de resistência à tirania que não culminasse nos altos índices de
homicídios entre eles? Ainda como assinala Freud (1933 [1932]), contra a guerra
ou a destruição no plano político, algumas soluções mediadoras podem se
levantar. Dentre elas, ele destaca o desvio da pulsão agressiva (pulsão de
morte), ineliminável do homem, por dois dos vínculos emocionais a ela
relacionados: por oposição, a pulsão de vida (finalidade sexual) ou por
correlação, a identificação.
A
oficina de quadrinhos, nessa lógica, pretende colocar o ato agressivo no laço
social fazendo-o produzir uma política que operaria ao avesso do discurso
capitalista, com potencial para fazer a torção da exclusão, sem reprimir a
agressividade e respeitando as iniciativas de resistência dos jovens. Isto,
pois, introduz um desvio na circularidade do discurso, usando a agressividade
na arte para promover o laço dos pares no morro – aspecto fundamental para
pensarmos a presença da psicanálise no campo das políticas públicas, em
especial no da segurança pública e dos direitos humanos.
A
FACE SUBJETIVA
Extraímos,
enfim, três elementos na composição do método que articula subjetividade e
política nesse contexto: o ato agressivo como potencial de criação, intervenção
e construção social; o estatuto do “não” através do qual os jovens resistem às
diferentes formas de opressão e exclusão, e, finalmente, a criação do novo,
como efeito-causa desse processo.
Assim,
tomemos, em primeiro plano, a premissa freudiana de que a agressividade pode servir à destruição, mas também que é necessária
e pode ser dirigida à construção da
civilização. É assim que se fazem as revoluções no plano político e se engaja a
pulsão de morte (gozo) no plano inconsciente, que se torna, então, ligada a um
objeto ou ideal. No que toca à dimensão inconsciente, Freud (1930 [1929]) nos
lembra, que é necessária certa cota de agressividade na própria construção da
civilização. Para ele, toda energia pulsional ligada a uma representação tende
à descarga que gera satisfação e alívio ao aparelho psíquico. Há, entretanto,
certa cota que não encontra vias de se fazer representar, insistindo
repetidamente em seguir caminhos que não conduzem à satisfação, mas induzem ao
sofrimento. Elas são conhecidas por pulsão de morte, enquanto as outras por
pulsão de vida.
Freud,
entretanto, nos adverte que elas estão amalgamadas, ligadas uma à outra como
contraforças, pois isoladas tenderiam à estabilidade do sistema, que culminaria
na morte. Portanto, não se trata de uma força do bem e outra do mal, uma que só
constrói e outra que destrói, mas, antes, do jogo de forças que se estabelece
permanentemente entre elas. Ele não propõe um modelo maniqueísta em que a
pulsão de vida estaria a favor da vida e a pulsão de morte dirigida à
desconexão apenas. É necessária a relação de empuxo entre as duas, pois,
isoladas, tanto a pulsão de vida quanto a de morte levariam mais rapidamente um
corpo à êxtase, à nirvana, à morte. Assim, a luta e a competição são
necessárias ao desenvolvimento da vida coletiva, exigindo uma cota de
agressividade para se realizarem. É difícil para o homem abandonar a satisfação
dessa inclinação para a agressão (FREUD, 1930 [1929], p. 136).
A
questão central, para a metodologia em discussão, é como encontrar vias de
desvio da pulsão de morte, quando ela se encontra exacerbada na experiência do
sujeito com a alteridade. Daí a ideia central de oferta de outras
possibilidades de manifestação do ato, através do ato criativo, que impulsiona
o corpo em outra direção que não a morte, por um lado. E, por outro, a
apresentação de um novo campo de identificações através do qual o sujeito pode
se escrever na cena política local, valendo-se de novas insígnias e ganhando
visibilidade sem o uso da ameaça e da força bruta letal.
Na segunda dimensão da face subjetiva,
avançamos na discussão do “não” como presença em toda forma de resistência.
Entretanto, o “não”, que caracteriza as formas de resistência ao poder ganha,
na psicanálise, uma forma específica, a Verneinung,
que nos leva a complexificar o processo subjetivo aí em jogo. Para a
psicanálise, o “não” é uma espécie de atestado da incidência do inconsciente,
um “made in inconsciente”, como
brinca Freud (1925). Quando, pois, negamos com veemência uma relação, um
objeto, um ideal, pode ser que ele esteja, exatamente, articulado no plano
inconsciente a uma forma de resposta ao que desejamos.
No plano inconsciente, o “não” (ou die Verneinung) constitui um modo de se
tomar conhecimento daquilo a que o sujeito não acede, ao que está fora de seu
alcance cognitivo ou consciente, ao que está recalcado. Trata-se de uma
suspensão do recalque, mas nem por isso uma aceitação do recalcado, uma
suspensão do juízo ou da censura, que permite ao sujeito acessar elementos
inconscientes, mas ao preço de denegá-los, evidenciando que a função
intelectual está separada do processo afetivo. “A Verneinung é da ordem
do discurso, e concerne ao que somos capazes de fazer vir à tona por uma via
articulada” (LACAN, 1955-56/1992, p. 101).
Assim, o ato dos jovens não deve ser tratado
de uma maneira asséptica, como se a sociedade não necessitasse de algo da ordem
da agressividade para se modificar. Ao invés de iniciativas repressivas,
podemos articular, no plano das políticas públicas, ações estratégicas que
promovam outras referências, outros ideais, outros modos de operar e outros
objetos, para os quais o jovem possa dirigir sua capacidade de resposta e laço.
Nesse sentido Dunker e Propheta (2012) citam alguns teóricos que têm pensado a
violência e o ato, não em uma perspectiva que os contrapõe à paz, mas como um
potencial para a mudança, como Vladmir Safatle, que defende o ato
revolucionário como aquele que admite a indeterminação na qual um sujeito pode
reconhecer em si próprio um outro. Ou ainda Alain Badiou que chama de “paixão
do Real” a lógica de que, se alguém defende a igualdade, os direitos humanos e
a liberdade, não deve se esquivar da coragem de fazer valer esses princípios.
O “não”, assim, assinalaria uma aposta do
sujeito, uma tomada de posição em ato, na medida em que é sempre pelo ato da
fala que nos engajamos no desejo. Mas poderia, como acabamos de ver, assinalar
o engodo do eu que nega o desejo ao racionalizar a relação com o recalcado.
Essa dupla forma de resistência merece ser considerada na metodologia que
discutimos, para evitar que a radicalidade da experiência desejante não seja
confundida com uma espécie de erro de cálculo, que faz com que jovens percam a
própria vida.
Finalmente,
numa terceira dimensão, é preciso entender como outras formas de resistência,
pacíficas, culturais, artísticas e políticas, engendram o novo. Para
exemplificar a aplicação desses conceitos no âmbito social tomamos novamente o
movimento Occupy, no qual há uma tomada da discussão que se abre pelo negativo,
pela recusa do modelo de vida imposto pelo discurso do capitalista.
Devemos resistir
precisamente a uma tradução assim apressada da energia das manifestações para
um conjunto de demandas pragmáticas “concretas”. Sim, os protestos realmente
criaram um vazio – um vazio no campo da ideologia harmônica -, e será
necessário algum tempo para preenchê-lo de maneira apropriada posto que se
trata de um vazio que carrega consigo um embrião, uma abertura para o
verdadeiro Novo”(p.18).
Assim, também, no plano
inconsciente o trabalho da fala permite dar forma pela palavra (significante)
ao vazio central (das Ding) que, sem contorno, devasta e
avassala o sujeito. Tal qual no trabalho do oleiro, que forja um contorno de
argila dando forma ao vazio central do vaso; assim também o sujeito, ao modelar
o significante (a palavra/a representação), introduz na realidade uma tela que
circunscreve sua posição no mundo e exclui outras, sendo impulsionado, a partir
de então, por essa conformação. O reencontro com essa dimensão do vazio, com o
real (tyché), rompe com o circuito
repetitivo de satisfação (automaton),
obtido pela fórmula originária (fórmula da fantasia) que o sujeito encontrou
para jogar com ela na cena simbólica, permitindo novas formulações sobre seu
ser e suas relações com os objetos e ideais.
Dessa forma, a produção do novo
como acontecimento que rompe o circuito da repetição (significante) (automaton) se realiza a partir do
encontro com o real (tyché), com uma
dimensão não articulada, não prevista e inesperada, que surpreende o sujeito e
instala novo circuito para a satisfação. Esse (re)encontro afeta, portanto, os
dois planos simultaneamente, implicando em nova tomada de posição subjetiva e
política.
ENTRELACES ENTRE A FACE POLÍTICA E A FACE SUBJETIVA
Algumas manifestações populares
são exemplos de manifestação da política local que comportam esses três
aspectos metodológicos destacados. O movimento dos MCs de Belo Horizonte, em
Minas Gerais, ocupou o centro velho da cidade para a promoção do “Duelo de MCs”
– iniciativa que leva para o “asfalto” a linguagem e cultura da população
marginalizada dos aglomerados. Através destes duelos de rap, jovens da periferia fazem discussões políticas sobre a música,
a exclusão, o ambiente (Rio + 20), os espaços públicos, a educação e o que mais
for de interesse deles ou estratégico para o movimento. Esse tipo de
manifestação criativa leva em consideração a subjetividade dos manifestantes
expondo não apenas suas marcas culturais, como também suas formas de gozo. Na
torção, pode-se perceber também o caráter político, expresso pelo valor
econômico-social da possibilidade de entrada na discussão quanto ao sistema de
governo.
Assim também a oficina de quadrinhos pode ser
entendida como a busca por um ultrapassamento que transforma o ato agressivo
direcionado ao outro, jovem da “boca” rival, e a repetição alienada
da “guerra”[3],
em um ato criativo com potencial para romper com a posição estabelecida no laço
social. Se tomarmos o fenômeno social do ato agressivo dos jovens de periferia
através do crime é possível pensar que esse ato pode ser entendido como
elemento de propulsão de mudanças táticas para atingir a estratégia de
modificação da posição imposta pelo discurso capitalista[4].
Nesse
sentido, ambos os grupos, movimentos de periferia e as revoltas de 2011, se
encontram submetidos à mesma política da ideologia capitalista e às mesmas
relações de poder da estratégia. Entretanto as táticas de resistência adotadas
são diferentes. Para os que estão no
asfalto, a tática é ocupá-lo; para os que estão no morro, a violência acaba
como agressividade, sendo desviado do Outro para atingir o outro. Ou seja, é
como se, em Totem e Tabu (FREUD, 1913 [1912-13]), os irmãos resolvessem atingir
uns aos outros, lutando por suas reivindicações de maneira desordenada e
destrutiva, e não ao Pai da Horda, estabelecendo nova ordenação dos corpos e
das relações de poder.
CONCLUSÃO
Para
que uma revolta possa romper com as posições predeterminadas de grupos na
sociedade, é preciso que o ato agressivo seja capaz de fazer laço e ter um
objetivo político determinado, que seja possível através de diferentes
estratégias. Podemos entender que uma das faces da entrada na “guerra” do
tráfico é a busca por melhores condições de vida, pela saída da invisibilidade
e, assim, por alguma forma de presença reconhecida no laço social. Essa busca
não deixa de ser uma manifestação política. Entretanto, ao pegar em armas para
atingir a estratégia de mudar as relações de poder, eles se voltam uns contra
os outros, na figura dos rivais de outro território e, assim, a tática
fracassa, pois é desviada, voltando a cumprir os ideais da política em que
estão submersos.
Na face subjetiva, mudam os semblantes de que
se valem para participar da cena pública, mas não sua forma de gozo, de
obtenção de satisfação. Permanecem submersos aos ideais alienantes do Outro da
cultura local, passando de revoltados ou indisciplinados para temidos. O que
aparece no cenário local com nova aparência, a do criminoso, apenas reedita o
fracasso escolar, a errância familiar e o desamparo. Permanecem servos de uma
mesma ordem que os inclui pela exclusão. Alienados aos significantes mestres do
crime, nesse caso o tráfico, repetem o circuito que os aloja num gozo
mortífero.
O desvio desse ato agressivo para respostas
que façam laço pode funcionar como possibilidade de criação de novas perguntas
a serem feitas. Segundo Zizek (2012),
Devemos tratar as
reivindicações dos protestos de Wall Street de maneira semelhante:
intelectuais não devem tomá-las inicialmente como reivindicações e questões
para as quais precisam produzir respostas claras e programas sobre o que fazer.
Elas são respostas, e os intelectuais deveriam propor as questões para elas. A
situação é como a da psicanálise, em que o paciente sabe a resposta (seus
sintomas), mas não sabe a que ela responde, e o analista deve formular a
questão. Apenas por meio desse trabalho paciente, surgirá um programa (p. 25).
Com
a aplicação dessa lógica metodológica foi possível pensar a dimensão política,
determinada pelos fatores materiais e econômicos, e a dimensão subjetiva,
determinada pelo inconsciente, como uma banda de Moebius, o lado e o avesso de
uma mesma posição que refere o sujeito ao Outro. Como quadrinho, que irá
circular por todo o morro, pretende-se fazer circular o ato agressivo fazendo
laço entre os pares de forma a que se torne possível que uma nova pergunta se
escreva, tanto no contexto histórico e social de extermínio desses jovens, como
na singularidade de cada um deles.
BIBLIOGRAFIA
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[1] Programa da Secretaria de Estado
de Defesa Social de Minas Gerais – SEDES.
[2] Acting out e passagem ao ato e
ato analítico
[3] Guerra nesse contexto é a
denominação adotada pelos jovens de periferia para se referirem à disputa
armada entre territórios dentro dos próprios aglomerados.
[4] Von Clausewitz,
teórico da estratégia, utiliza três conceitos que mais tarde serão usados por
Lacan em seu texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, de
1958: a estratégia, a tática e política. Para Clausewitz, primeiramente, a
política consiste nas decisões de como usar da guerra para viabilizar o alcance
dos objetivo políticos; já a tática comporta as considerações relativas ao
emprego do meio para os propósitos do enfrentamento: uso sucessivo ou
simultâneo da forças, o modo de combate cerrado ou a distância e o timing de
conversão de um ato destrutivo para um ato decisivo; e a estratégia seria a
série de considerações e decisões relativas ao emprego dos enfrentamentos para
a produção dos propósitos específicos de uma determinada guerra.
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