CLÍNICA
E POLÍTICA INTERROGADAS
PELO ATO INFRACIONAL: A CONSTRUÇÃO DO CASO.
Miriam Debieux Rosa
Aline Souza Martins
Ana Paula Musatti Braga
Isabel Tatit
Disponível em: Diálogos
com o campo das medidas socioeducativas: conversando sobre a justiça, o
cotidiano do trabalho e o adolescente. Org: Jacqueline MOREIRA, GUERRA, A. M. C. SOUZA, J. M. P. de. Curitiba: CRV,
2013.
Este
texto põe em destaque a posição do analista a partir daquilo que efetivamente o
faz analista – a sua implicação com a clínica em seus inúmeros desdobramentos,
desafios e impasses. Escrever a clínica é um ato no sentido psicanalítico do
termo –põe em jogo um trabalho na transferência, endereçado e comprometido com
uma práxis a ser compartilhada, articulada com elementos singulares de um tempo
e lugar que, visitados, permitem a transmissão de um desejo e a manutenção da
vitalidade e atualidade de sua prática. Fomos convidadas para a
responsabilidade de acolher este endereçamento e relançar seus efeitos, mais um
passo na transmissão da psicanálise.
O
caso “Falando pelos muros: um recorte de acontecimento do caso Shake”, descrito
por Poliana Rocha Tavares, convoca muitas reflexões e desafios em especial
pelas circunstâncias particulares que nada lembram a tradição psicanalítica –
trata-se de uma escuta clínica em um contexto institucional ligado à Justiça,
com um adolescente em medida sócio-educativa. A cena psicanalítica depara-se
com a cena sócio-política, aparentemente distante nos consultórios, e é posta à
prova pelos atravessamentos diretos que põem em cheque a possibilidade de
sustentação do trabalho analítico. Inúmeros são os pontos de reflexão: a
adolescência, o uso e tráfico de drogas, o território com as condições
socioeconômicas e desigualdades, o discurso jurídico, o ato infracional e a
oferta do atendimento psicanalítico sem demanda prévia.
Os
impasses aqui encontrados denotam a dimensão clínico-política da prática
psicanalítica (ROSA,2012/2013) que relança as demandas institucionais, em geral
focadas naqueles indivíduos que desorganizam ou atacam as normas
institucionais. Como psicanálise
implicadana escuta dos sujeitos situados precariamente no campo social, permite
desconstruir os modos como são capturados e enredados pela maquinaria do poder
e intervém nos laços sociais que atualizam os processos de exclusão em curso.
A interrogação que
nos foi formulada refere-se a um traço em particular do caso: Num certo dia Shake chegou antes do horário
agendado para o atendimento, indo à sala para procurar as técnicas de
referência. Chegando lá ... o adolescente decidiu aguardar a técnica de
referência de sua outra medida. Enquanto aguardava começou a escrever nas
paredes do prédio com uma caneta hidrocor. Ao chegar para fazer o atendimento,
a técnica da LA (liberdade assistida) se deparou com Shake escrevendo na parede
e o chamou para conversar, sem saber que ele já tinha feito escritas em todo o
segundo andar do prédio.
Vamos
inicialmente pensar as coordenadas que constituem um caso clínico e suas
funções na transmissão/criação da psicanálise.
A construção
do caso clínico
Apresentação, discussão, supervisão
de casos clínicos são consideradas o cerne da investigação em psicanálise.
Temos visto inúmeras formas e estilos - pode ser tanto uma articulação em torno
de um fragmento, como Albert, descrito em Interpretação dos sonhos (Freud,
1900), quanto um relato pormenorizado de diversas sessões, como a descrição que
Freud (1909) faz de Hans. Existem casos em que a narrativa gira em torno de
personagens literários ou históricos com os quais o escritor-analista nunca
teve contato, como a construção que Freud (1906) faz na Gradiva de Jensen ou em
seu texto sobre Leonardo Da Vinci (1910). É possível ainda que o analista
construa um caso em torno de sua própria análise ou através da supervisão. Os
casos podem ser apresentados em grupos ou por meio de textos. Estas diferentes
modalidades de apresentação de caso têm funções variadas no campo psicanalítico.
Vamos
abordar neste artigo o caso clínico como construção que inclui o analista,
instigado em seu desejo na escuta do caso – sem escuta não há caso e permite
situar, numa escrita, mais do que uma história, uma posição para o sujeito na
ficção fantasmática. O caso revela não só o pesquisado, mas também aquele que
escuta e as sinuosidades do campo que transita. “Não seria o caso clínico um
entre parênteses, indicando um encontro interrompido entre alguém que fala e
outro que escuta no limite do fantasma que o suporta e da teoria que o
orienta?”, pergunta-se SOUSA (2000, p.17). O caso não se confunde com a
história, não é biográfico: “É ficção clínica, resultado de uma hipótese
teórica” (SOUSA, 2000, p 19). Caso
significa ocorrência, acontecimento e narrativa, deriva de casu em latim e ptosis em
grego, sentido genérico de queda (DUNKER, 2011). Podemos dizer que a construção
do caso se dá em torno da queda do sentido e da produção de um enigma para o analista, que o interroga
sobre o caso e a partir do qual se produz uma narrativa - ficcional.
Destacamos
três aspectos constituintes e enodados na construção do caso clínico, dando
realce a três termos: a marca do caso, a construção e a transmissão por uma escrita.
1)
A marca do caso (DUMEZIL, 1989),
enigma em torno do qual a narrativa do analista é estruturada.
2)
O seu caráter de construção, que
evidencia o abandono do ideal de busca de uma verdade única; busca a elaboração
de um saber na direção tanto da historização do sujeito como da interrogação da
teoria;
3) O efeito de transmissão na dupla direção – para quem
fala/escreve sobre o caso, remetetransformação da vivência em experiência e
quem escuta tem a possibilidade de receber o testemunho e dar endereço para sua
circulação.
Estes
termos operam em diferentes tempos, e a sua escrita carrega as inscrições e
apagamentos destes processos.
....
Concluindo o
caso e ultrapassando o muro
Por ser atravessado pelo “muro da linguagem”, Shake pode tanto escrever pelas
paredes quanto ser falado por significantes por meio dos quais se inscreve no
mundo. O adolescente, impossibilitado de falar, atua “ins-crevendo”
(junção de escrever com inscrever) nas paredes sua tentativa de fazer cessar a
angústia de ser pai. Esse é um fragmento de real que impulsiona tanto a escrita
de Shake quanto a construção do caso, pois, “de alguma forma um caso clínico
deve tocar algo de real em nossa existência: a relação entre a lei, a morte e o
desejo” (DUNKER, 2011, p. 570).
Se tratando de um adolescente em cumprimento de medida
socioeducativa é possível pensar que tornar-se pai pode estar relacionado
inclusive ao entrelaçamento desses três critérios: passar da posição de filho
que deve obedecer a lei para alguém que irá ser um representante da lei para a
criança que nasce; a ressignificação da possibilidade de morte, tão próxima
para adolescentes envolvidos com o tráfico de drogas; e a reatualização do desejo
nessa nova posição de ser pai.
Ao escolher a expressão “falando pelos muros” para nomear
o caso, se implica necessariamente um sujeito
nessa ação, um sujeito falante, um sujeito da linguagem e, portanto, no
laço social. Embora a fala se dê ainda “pelos muros”, isto é, uma fala que não
se dá diretamente entre sujeitos, há uma tentativa em ato de escutar esse
rabisco na instituição, representante da angústia de Shake.
Possibilitar a abertura para que o sujeito possa inscrever
algo da sua singularidade na instituição faz parte da função do analista que se
propõe a trabalhar nesses espaços. A instituição é o “sistema de regras que
cerca a comunidade de vida” (LAURENT, 2003, p. 84), e nesse sentido que
aproximamos do discurso, acabamos todos referidos a ela (a instituição), tanto
nos consultórios clínicos quanto nos espaços que reúnem vários sujeitos. O
papel do analista nas instituições é, portanto, ser mais um discurso,
mais que um lugar vazio, é
aquele que ajuda a civilização a respeitar a articulação entre norma e
particularidades individuais. O analista, mais além das paixões narcísicas das
diferenças, tem de ajudar, junto de outros, sem pensar que é o único que está
nessa posição. Assim como outros, há de contribuir para que não se esqueça, em
nome da universalidade ou de qualquer outro universal, tanto humanista quanto
anti-humanista, a particularidade de cada um. (...) é preciso recordar que não
se deve tirar de alguém sua particularidade, a fim de misturá-lo com todo o
universal, em razão de algum humanitarismo ou qualquer outro motivo (LAURENT,
2007, pp.144-145).
Os muros não falam, mas os escritos na instituição
viabilizam que os sujeitos falem por meio deles. Dessa forma, não sabemos ainda
das determinações - subjetivas e sociais - que colocaram Shake naquele lugar,
"do tráfico", mas pelas manifestações nos muros vemos seus efeitos.
Logo de início, a ideia do título nos transmite a possibilidade de Shake
retomar, através da fala, sua história de vida como um sujeito singular e não
como simples produção dos muros imaginários que definiram um lugar alienante
para o adolescente, a saber, o lugar de "infrator", “traficante” e “usuário
de substâncias”. Cada um de nós é dividido pelo muro da linguagem, que é
simbólico. Esse muro não isola um sujeito do outro, mas, pelo contrário o
insere no campo social por meio de uma linha divisória que é a linguagem.
A linguagem, os predicados, o discurso com que o sujeito
é falado pelo Outro tem menos o caráter preditivo e mais o caráter construtivo.
Isso quer dizer que a maneira com que se fala desses adolescentes, a
instituição a qual estão referidos, contribui para a construção de como eles se
mostrarão para a sociedade
a
prisão sintática – um sujeito acorrentado a um predicado – é eterna justamente
porque suprime o tempo, transformando o ato em expressão do ser, convertendo a
ação em um estado permanete, fazendo do crime um retrato verdadeiro, essencial
e definitivo da natureza mesma de João [no nosso caso Shake]. Mesmo que ele
mude, a sentença e a prisão o mantém conectado ao mesmo canal, na mesma
sintonia do ato criminoso (SOARES, 2011, p.159).
Entendemos, como já se disse, que foi importante na intervenção
clínico política da institutiçao, a leitura da escrita na parede que revelava
mais do que uma “infração”, era uma tentativa de falar dessa experiência
subjetiva e particular. Neste sentido, uma “prática
ético-política que propicie a escuta e indique um lugar discursivo que
possibilite ao jovem uma posição de fala e outra posição no campo social” (ROSA
& VICENTIN, 2012).
A
possibilidade de escuta do dizer do ato de Shake provoca uma inversão no
imaginário social acerca desses adolescentes, abrindo espaço para a construção
de apostas e saídas singulares. Aposta do analista e saída do adolescente.
Saída que representa um novo e particular fazer com a instituição, com a
linguagem e com os muros que se impõe entre os jovens e um tipo de laço social.
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[i]Psicanalista, coordena o Laboratório Psicanálise e
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(PUC-SP).Coordena a pesquisa Responsabilidade e responsabilização:
diálogos entre psicologia, psicanálise e Sistema de Justiça Juvenil (CNPQ). E-mail: debieux@terra.com.br
[ii]Psicanalista, Mestranda em Psicologia Clínica (USP)
com o tema da guerra do tráfico de drogas. Graduada em Psicologia pela UFMG.
Membro do Laboratórios de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise/Latesfip
e Membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade (USP) e do Núcleo
Psicanálise e Política da PUC-SP. E–mail: alinesouza.martins@gmail.com
[iii]Psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela USP,
doutoranda em Psicologia Clínica pela USP. Membro do Laboratório Psicanálise e
Sociedade da USP e do Núcleo Psicanálise e Política da PUC- SP. E-mail: ana.musattibraga@ajato.com.br
[iv][iv]Psicanalista,
doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, mestre em
Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012).
Membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade da USP e do Núcleo Psicanálise e
Política da PUC-SP. E mail: i_tatit@hotmail.com
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