Homo Sacer, sujeitos abandonados ao
crime
Aline
Souza Martins
Disponível em: http://www.appoa.com.br/correio/edicao/240/homo_sacer_sujeitos_abandonados_ao_crime/158
Homo Sacer é um conceito cunhado por
Giorgio Agamben, filósofo italiano cuja produção se concentra nas
relações contínuas entre filosofia, ética, estética, lógica, literatura,
poesia, política e o meio jurídico, compreendendo-as como áreas implicadas umas
nas outras e indiferentes. Esse autor é considerado um importante expoente intelectual
sobre a teorização do mundo contemporâneo e vem sendo usado como referencial
teórico de diversas pesquisas. Ele retoma a figura do direito romano antigo, Homo Sacer, para evidenciar o ponto
entre o poder soberano e a biopolítica que é exercido pelo meio jurídico e que
torna certas vidas, Homo Sacer,
matáveis. A pesquisa de Agamben trata do ponto oculto entre o modelo
jurídico-institucional e o modelo biopolítico de poder, questão que foi
ignorada por Foucault (ENDO, 2011). Ou seja, o autor reinscreve o poder
soberano como atuante, e considera que a biopolítica é tão antiga quanto a
exceção soberana. Na relação com a
política, também podemos observar a presença da extimidade e do contraditório
na constituição do sujeito, principalmente quando pensamos os sujeitos na
guerra do tráfico, excluídos e incluídos da política.
Agamben retoma a distinção feita por Aristóteles entre
Bios e Zoé. Bios é o reino da ética e da moral onde se manifesta o juízo,
representa o modo de viver dentro de um grupo que depende da linguagem. Já Zóe
é a vida nua, a vida natural e biológica comum a todos os homens, ou seja, a
mera existência. Para o autor, o Homo
Sacer demonstraria a inversão da tese de Walter Benjamin de que a vida nua
seria onde cessa o domínio do direito sobre o vivente. Para Agamben, a vida nua
é o campo em que se mantém o paradoxo (ENDO, 2011), é o lugar em que a vida foi
excluída por sua inclusão, onde só o direito pode alcançar o vivente. Assim, a
vida torna-se matável pela ordem do poder soberano juridicamente construído, o
poder jurídico torna o vivente excluído, aniquilado e matável.
O paradigma de onde esse processo acontece são os
Campos de Concentração nazistas descritos por Hannah Arendt, nos quais o
indivíduo é reduzido a pura Zóe, animalizado, e seu corpo é privado de sua
diferenciação, absolutamente controlado e aniquilado. Para Hannah Arendt (1990),
a figura do refugiado faz surgir o homem de direitos fora da máscara de
cidadão. A declaração de 1789, que institui os direitos inalienáveis e o princípio
da soberania da nação, seria responsável pela ilusão de união entre o
nascimento do homem e o nascimento do cidadão. A necessidade de se recorrer aos
direitos do homem marcaria a vida nua, não política, já que a vida autêntica
estaria no âmbito dos direitos do cidadão. Portanto, as organizações
humanitárias teriam como objeto a vida nua, carente de proteção e ajuda.
Entretanto, Agamben também entende que não vivemos mais em um regime
estritamente totalitário, marcado pelo poder soberano. Acompanhando o pensamento de Foucault
(1988), Agamben também acredita que surge uma nova forma de poder, chamada,
biopoder. Entretanto, para o filosofo italiano o biopoder é colocado em prática
pelo Estado de Exceção (lei suspensa a partir da própria instituição), que é um
artifício da soberania previsto na lei. Foucault defende que "[...] o
homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo
e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em
cuja política sua vida de ser vivo está em questão" (FOUCAULT, 1988,
p.156). O poder sobre essa vida, o biopoder, se faz por duas fontes: a
disciplina do corpo e a regulação da população. A disciplina do corpo o
considera como máquina, fazendo o controle dos movimentos e tempos, o
adestramento, incentivando as aptidões, fazendo a extorsão da sua força e
mobilizando o crescimento da sua utilidade e docilidade. Assim há a integração
em sistemas de controle eficazes e econômicos. A segunda fonte considera o
corpo como espécie, e trabalha em cima de seus processos biológicos, como
proliferação, nascimento, mortalidade, saúde e longevidade, usando esses
índices de regulação para promover a intervenção e o controle das populações.
O filósofo nos diz que (FOUCAULT, 1988, p. 153)
A velha potência da morte em que se
simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela
administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Desenvolvimento
rápido, no decorrer da época clássica, das disciplinas diversas – escolas,
colégios, casernas, ateliês; aparecimento, também, no terreno das práticas
políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade,
saúde pública, habitação e migração; explosão, portanto, de técnicas diversas e
numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. Abre-se, assim, a era de um
"biopoder".
Mesmo com algumas discrdâncias, Agamben irá usar esses
dois conceitos, Campo e biopoder, para construir sua tese de como a política
funcionaria no mundo contemporâneo, e um dos pontos centrais desta teria é a Homo Sacer. Este conceito representa a
vida indigna de ser vivida, o limiar além do qual a vida cessa de ser
politicamente relevante para o Estado e então pode ser eliminada. Agamben se
pergunta se "[...] existem vidas humanas que perdem a tal ponto a
qualidade de bem jurídico, que a sua continuidade, tanto para o portador da
vida como para a sociedade, perdeu permanentemente todo o valor" (Agamben,
2010, p. 133). E ele mesmo responde (2010, p.135):
Toda a sociedade fixa este limite,
toda a sociedade – mesmo as mais modernas – decide quais sejam seus "homo
sacer". É possível, aliás, que este limite, do qual depende a politização
e a exception da vida natural da ordem jurídico estatal não tenha feito mais do
que alargar-se na história do Ocidente e passe hoje – no novo horizonte
biopolítico dos estados de soberania nacional – necessariamente ao interior de
toda a vida humana e de todo o cidadão. A vida nua não está mais confinada a um
lugar particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de
cada ser vivente.
Os espaços de Campo se propagam e vai se criando uma
sociedade "homosacerizada", na qual todos lutam para não cair no
Campo ou para sair dele. "[...] o Campo como localização deslocante é a matiz
oculta da política em que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer
através de todas as suas metamorfoses, nas zonnes
d´attente de nossos aeroportos, bem como em certas periferias de nossas
cidades" (Agamben, 2010, p. 171). Portanto, Agamben (2010) aponta uma
aproximação entre o Campo como matiz política e aquilo que se vive nas favelas
brasileiras.
Durante a pesquisa de mestrado Por que a guerra? Política e subjetividade de jovens envolvidos com o
tráfico: um ensaio sem resposta (Martins, 2014), foi possível perceber essa
aproximação ao ouvirmos os jovens descrevendo o seu cotidiano. Muitos nos
relataram que é muito difícil andar pelo aglomerado onde vive para poder ir à
escola, ou ao trabalho, pois essas atividades exigem o trânsito regular em
horários fixos, o que torna o trajeto especialmente favorável para uma
emboscada do inimigo. Não é possível circular no morro pois alguém está sempre
vigiando, Blue[1],
um dos entrevistados nos conta "Isso
aqui é rastreamento total de onde você vai".
Os adolescentes falam claramente da sensação de
insegurança de se sentirem como matáveis, como sujeitos constantemente
ameaçados pela possibilidade de serem vítimas de violência sem que a polícia
faça sua proteção. Galã, outro entrevistado, diz "Entrei nessa vida quando mataram meu irmão aí, ó. É. Chegando do
serviço. Queria matar um cara lá, chegou, deu tiro e matou ele"; Blue
conta: "Eu mesmo comecei porque
minha irmã namorava um bandido. Aí eu vi muita história de mulher que os cara
pegava elas à força, colocava no cativeiro. (...) Aí eu comecei a juntar
dinheiro e comprar muito revólver".
A relação com a lei e com a polícia também dá ensejo a
essa posição de segregação. Galã se
queixa: "Igual aí, eles andam de
ninja [carro da polícia] pra cima aí, você vai lá denuncia um policial desses
aí, eles trombam com você aí, eles te torturam você, te matam aí e fazem
picadinho, picadinho de você". E ao ser preso a situação também é
difícil, pois nem sob a custódia do Estado eles estão protegidos, "Porque cadeia não conserta ninguém mesmo,
fica pior. Pior mesmo. Muda pra pior porque lá dentro os presos são mal
tratados, trata que nem cachorro. Que nem cachorro não, que os cachorro aqui
são tratados bem demais. Só de eles ficarem andando aí, ó. Lá não, lá a maioria
dos presos sai é revoltado".
Agamben (2010) defende três teses principais, apoiado
nos conceitos de Campo (Arendt, 1990) e de biopolítica (Foucault, 1988). A
primeira tese entende que a relação política primária é o bando, o Estado de
Exceção originário como zona de indistinção entre o externo e o interno,
exclusão e inclusão. A segunda define que o rendimento fundamental do poder
soberano é a produção da vida nua como elemento político original e como limiar
de articulação entre a natureza e cultura, Zoé e Bios. A terceira e última tese
observa que é o Campo, e não a cidade, o paradigma biopolítico do ocidente
hoje.
É justamente por ser constantemente ameaçado de morte
que o Homo Sacer se encontra em plena
relação com o poder que o baniu. Constituindo-se como exilado, ele passa ter a
forma de vida mais política que existe. Assim, o corpo biológico se iguala ao
corpo político. Agamben (2010, p. 182) nos diz que "[...] nós não somos
apenas, nas palavras de Foucault, animais em cuja política está em questão suas
vidas de seres viventes, mas também, inversamente, cidadãos em cujo corpo
natural está em questão a sua própria política".
Desta inflexão se faria o paradoxo mantido por Agamben
de uma exclusão incluída, o Homo Sacer participaria
da vida política pela via da ex-sistência (GUERRA, MARTINS, 2012), sendo
simultaneamente aquele que se encontra mais dentro e mais fora. Como se esse
homem sagrado tivesse o poder de andar sobre a banda de moebius, com a vida nua de um lado e a vida política de
outro. Exatamente por manter sempre os pés de um mesmo lado da fita, ele acaba
chegando ao seu avesso. Deste modo, o Homo
Sacer mantém a imagem de unidade do sistema, sem falta, sem a contradição,
sem o desruptivo do real que vem quebrar toda a unidade, pois esta é sempre
imaginária. "Com ele se realiza o fantasma da unidade indivisível em que
ele figura, como excrescência, resto, paradoxo" (ENDO, 2011, p. 500).
Assim, Agamben põe fim à dicotomia inclusão-exclusão, para o autor só existe
uma exclusão incluída, que acaba sendo o receptáculo da pulsão de morte e
mantém o sistema nessa coesão aparente.
O que pretendemos demonstrar nesse texto sobre os
jovens em contexto de criminalidade na sua aproximação com o conceito
agambeniano de Homo Sacer é seu lugar
no discurso, no laço social. O
objetivo é desmistificar os jovens de periferia como negativo, destruidor da
autoconservação e dos laços sociais. Tanto a violência quanto a agressividade e
a guerra fazem parte do laço fraterno da cultura de maneira análoga à função da
relação complementar da pulsão de vida e pulsão de morte no ser. A menos que se
esperem relações sempre constantes e sem modificação, é necessário uma cota de
violência. Isso faz parte do laço para que se abra espaço nas estruturas
pré-determinadas a fim de que mudanças possam advir tanto no indivíduo quanto
na estrutura social.
Como o leitor já deve esperar, apostamos então que a
violência social provocada por esse jovens em conflito na guerra é uma resposta
à posição que ocupam na sociedade, posição essa propagada e conservada pelos
laços discursivos aos quais são submetidos. Esse discurso regula as relações
sociais por meio da linguagem. Através do discurso capitalista, a linguagem
impõe uma circularidade que faz com que as iniciativas desses jovens, de
manterem-se dignos e de obterem visibilidade, acabe reenviando-os para a
posição de exceção, de homens matáveis, ou seja, de Homo Sacer.
Referências
Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I.
Tradução de Henrique Burigo. BeloHorizonte: Editora UFMG, 2010.
ARENDT, Hanna. Origens do
Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
ENDO,
Paulo. A ressurgência da tirania como elemento originário da política. Em: entreAto: o poético e o analítico. Nina Virgínia de Araújo Leite, J.
Gullhermo Millán-Ramos (org). Campinas- SP: Mercado das Letras, 2011.
MARTINS, Aline Souza Martins. Por que a guerra?
Política e subjetividade de jovens envolvidos com o tráfico: um ensaio sem
resposta. Dissertação entregue ao departamento de Psicologia Clinica da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
MARTINS, Aline Souza. & GUERRA, Andréa Máris Campos. Psicanálise e política: contribuições
metodológicas. Em Revista Borromeo N°
4 - Año 2013. Disponível em
http://borromeo.kennedy.edu.ar/Artculos/CamposGuerrapsicoan%C3%A1lisisypol%C3%ADtica.pdf
. Acessado em 10 de novembro de 2013.
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