terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Adolescência e infração: conjugando fatores subjetivos e políticos no compartilhamento de responsabilidades

Adolescência e infração: conjugando fatores subjetivos e políticos no compartilhamento de responsabilidades


Andréa Máris Campos Guerra
Psicanalista. Psicóloga e Bacharel em Direito. Professora do Departamento e da Pós-Graduação em Psicologia (UFMG)

Aline Souza Martins
Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica (USP)

Marina Soares Otoni
Psicóloga. Mestranda em Psicologia (UFMG)

Disponível na Revista Brasileira de Ciências Criminais - RBCCrim, Ano 22, 109, Julho-Agosto, 2014. Coordenação Heloisa Estellita


Resumo:
Responsabilidade é um conceito que invoca o engajamento do sujeito para com a sociedade e vice-versa. Portanto, para ser analisado é necessário levar em consideração tanto o aspecto subjetivo-político, que concerne o adolescente envolvido no ato infracional, quanto à responbilização da sociedade pelo estabelecimento desse laço social, que comporta a expressão da agressividade pela infração. Assim, discutiremos nesse artigo a responsabilidade subjetiva por parte do adolescente diante do ato ilícito cometido, e simultaneamente a responsabilidade da sociedade por esse sujeito em formação. Para isso, partimos da contextualização da adolescência na contemporaneidade, analisando o trabalho do adolescente face ao corpo sexuado e estabelecendo algumas especificidades dessa experiência com ato infracional. Cotejamos essa discussão com a da responsabilidade social, que engaja a civilização no processo histórico de construção do anormativo, exigindo nova ética que inclua a agressividade no interior do laço social. Finalmente, contando com a experiência recolhida a partir de um caso, apresentamos nossa aposta de trabalho: uma atuação que use a psicanálise em parceria com as medidas socioeducativas. De um lado, sustentando um percurso que implique o adolescente em sua resposta; de outro, um percurso que implique a civilização diante de sua trama simbólica contemporânea.
Palavras-Chave: Adolescência; responsabilidade; psicanálise; infração; ECA.


Introdução

A partir da proposta psicanalítica da adolescência como sintoma da puberdade, pretendemos discutir os aspectos especificos da tomada de responsabilidade subjetiva por parte do adolescente, autor de ato infracional, diante do ato ilícito cometido. Para isso, partimos da contextualização da adolescência na contemporaneidade, analisando o trabalho subjetivo do adolescente face ao corpo sexuado e estabelecendo algumas idiossincrasias da experiência adolescente com o crime. Cotejamos essa discussão com a proposta de uma responsabilidade social, que engaja a civilização no processo histórico de construção do anormativo, exigindo nova ética que inclui a agressividade no interior do laço social. Finalmente, contando com a experiência recolhida a partir de um caso, levantamos algumas hipóteses acerca da contribuição da psicanálise face à responsabilidade jurídica e apresentamos nossa aposta de trabalho junto às medidas socioeducativas.

...


Conclusão

Essa nova maneira de conceber o ser sem negar a agressividade inerente aos processos de construção e desconstrução das normas sociais traz um novo papel ao Outro social, engajando o Estado e os demais atores da vida societária, como corresponsáveis, ao lado do próprio sujeito, enquanto atores na promoção de uma orientação política, que comporta a orientação subjetiva, no interior da própria ação social.
  Essa possibilidade de conceber a política, não como tentativa de normalização e apagamento da singularidade, mas como “espaço no qual o homem procura incessantemente modos de reconhecimento no inumano, dessa noite do mundo que nos exige ir lá até onde a imagem de si não alcança” (Safatle, 2012, p.234), é a possibilidade para que o inumano – a animalidade, a diferença e a anomalia, em que o inconsciente faz sua marca – seja reconhecido como constituinte do ser, abrindo espaço tanto para manifestações subjetivas quanto sociais que comportem a mudança e o desejo.
Assim, a responsabilização pela agressividade dos adolescentes em conflito com a lei pode ser escutada não só na clínica, na vertente subjetiva, mas também nas manifestações sociais, que gritam através de terrorismo poético, greves e, porque não, das manifestações dos jovens de periferia, pelas quais também somos responsáveis por dar ouvidos, como nos advertem Rosa e Vicentin (2012)

a condição paradigmática do sujeito contemporâneo se potencializa nos adolescentes, dado o encontro problemático entre os seus processos subjetivos e o discurso do capitalismo avançado (...). Ler o discurso sobre a violência no seu avesso significa inverter o enunciado do imaginário social. Nesse caso, a violência funda-se na ruptura dos fundamentos do contrato social, na perda de um discurso de permanência e de um lugar social que promova gratificação narcísica que, aliada a exclusão dos ideais e valores do grupo, produzem o rompimento dos laços sociais e os efeitos disruptivos na subjetividade (Rosa & Vicentin, 2012, p. 55).

Assim, podemos dizer que esse trabalho acaba por representar um apelo a uma práxis renovada da política com auxílio da psicanálise, capaz, através da articulação do trabalho com a responsabilização jurídica, subjetiva e social, de destampar os ouvidos para as manifestações dos adolescentes ao não se contentarem com a lei moral e o laço social instituídos, escutando, num gesto parrésico, o que seus atos infracionais buscam. De tal forma que, em algum intervalo, eles sejam menos necessários.
  Assim, considerando que a cada caso renovaremos essas hipóteses, apoiamo-nos em quatro premissas para pensar a responsabilidade junto a adolescentes em conflito com a lei :

Hipótese 1 - Há uma supressão do compasso de espera, da produção da fantasia, da tomada de decisão e, por consequencia, da consolidação de uma solução de responsabilidade construída pelo adolescente em conflito com a lei para a vida adulta.
Hipótese 2 - Na ausência dessa tomada subjetiva de decisão, o adolescente parece não se implicar em suas escolhas de vida, não se responsabilizando por seus atos de vida e de morte.
Hipótese 3 - Essa implicação exigiria, no plano subjetivo, um trabalho de inversão dos vetores quanto à causalidade. A pergunta recairia, então, sobre o que não comparece na cena do crime como vida nua e que, subtraído a ela, a determina e nela engaja o sujeito.
Hipótese 4E, no plano civilizatório, seria necessário o trabalho face ao reconhecimento e ao respeito ao a-normativo, demarcando novos termos para a ação política.

Apostamos que, pelo ato de responsabilização jurídica, é possivel engajar sujeito e civilização na construção da responsabilidade subjetiva e social. Entendemos que seria a partir da perda que a torção realiza em cada plano, subjetivo e civilizatório, que eles passariam a operar articulados e reconfigurados, com o tratamento conferido a essa perda e ao gozo a ela correlato. Seriam modificados, nesse ato, os dois planos, articulados em uma nova resposta ao mal-estar contemporâneo. A intervenção com vistas à responsabilização é uma possibilidade que atravessa as três dimensões, subjetiva, social e jurídica e se apoia no trabalho em rede das medidas socioeducativas em diferentes níveis, seja o da (1) ampliação no uso da palavra ; (2) ampliação dos horizontes político-culturais; ou (3) ampliação do acesso ao circuito do capital.
Assim, nessa gestão dos corpos pelo risco, não é fácil encontrar “a fórmula e o lugar” (Lacadée, 2011) para o adolescente autor de ato infracional compor nova presença no laço social. De um lado, exige percurso que implique o adolescente em sua resposta; de outro, percurso que implique a civilização diante de sua trama simbólica contemporânea. Afinal, “a denúncia do universo mórbido do crime não pode ter por corolário nem por finalidade o ideal de uma adaptação do sujeito a uma realidade sem conflitos” (Lacan, 1974/2003, p. 128).

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