Adolescência e infração: conjugando fatores
subjetivos e políticos no compartilhamento de responsabilidades
Andréa Máris Campos Guerra
Psicanalista. Psicóloga e Bacharel em Direito. Professora
do Departamento e da Pós-Graduação em Psicologia (UFMG)
Aline Souza Martins
Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica (USP)
Marina Soares Otoni
Psicóloga. Mestranda em Psicologia (UFMG)
Disponível na Revista Brasileira de Ciências Criminais - RBCCrim, Ano 22, 109, Julho-Agosto, 2014. Coordenação Heloisa Estellita
Resumo:
Responsabilidade é um conceito que
invoca o engajamento do sujeito para com a sociedade e vice-versa. Portanto,
para ser analisado é necessário levar em consideração tanto o aspecto
subjetivo-político, que concerne o adolescente envolvido no ato infracional,
quanto à responbilização da sociedade pelo estabelecimento desse laço social,
que comporta a expressão da agressividade pela infração. Assim, discutiremos
nesse artigo a responsabilidade subjetiva por parte do adolescente diante do
ato ilícito cometido, e simultaneamente a responsabilidade da sociedade por
esse sujeito em formação. Para isso, partimos da contextualização da
adolescência na contemporaneidade, analisando o trabalho do adolescente face ao
corpo sexuado e estabelecendo algumas especificidades dessa experiência com ato
infracional. Cotejamos essa discussão com a da responsabilidade social, que
engaja a civilização no processo histórico de construção do anormativo,
exigindo nova ética que inclua a agressividade no interior do laço social.
Finalmente, contando com a experiência recolhida a partir de um caso,
apresentamos nossa aposta de trabalho: uma atuação que use a psicanálise em
parceria com as medidas socioeducativas. De um lado, sustentando um percurso
que implique o adolescente em sua resposta; de outro, um percurso que implique
a civilização diante de sua trama simbólica contemporânea.
Palavras-Chave: Adolescência; responsabilidade; psicanálise; infração; ECA.
Introdução
A partir da proposta psicanalítica da adolescência como sintoma da
puberdade, pretendemos discutir os aspectos especificos da tomada de
responsabilidade subjetiva por parte do adolescente, autor de ato infracional,
diante do ato ilícito cometido. Para isso, partimos da contextualização da adolescência
na contemporaneidade, analisando o trabalho subjetivo do adolescente face ao
corpo sexuado e estabelecendo algumas idiossincrasias da experiência
adolescente com o crime. Cotejamos essa discussão com a proposta de uma
responsabilidade social, que engaja a civilização no processo histórico de
construção do anormativo, exigindo nova ética que inclui a agressividade no
interior do laço social. Finalmente, contando com a experiência recolhida a
partir de um caso, levantamos algumas hipóteses acerca da contribuição da
psicanálise face à responsabilidade jurídica e apresentamos nossa aposta de
trabalho junto às medidas socioeducativas.
...
Conclusão
Essa nova maneira de
conceber o ser sem negar a agressividade inerente aos processos de construção e
desconstrução das normas sociais traz um novo papel ao Outro social, engajando
o Estado e os demais atores da vida societária, como corresponsáveis, ao lado
do próprio sujeito, enquanto atores na promoção de uma orientação política, que
comporta a orientação subjetiva, no interior da própria ação social.
Essa
possibilidade de conceber a política, não como tentativa de normalização e
apagamento da singularidade, mas como “espaço no qual o homem procura
incessantemente modos de reconhecimento no inumano, dessa noite do mundo que
nos exige ir lá até onde a imagem de si não alcança” (Safatle, 2012, p.234), é
a possibilidade para que o inumano – a animalidade, a diferença e a anomalia, em
que o inconsciente faz sua marca – seja reconhecido como constituinte do ser,
abrindo espaço tanto para manifestações subjetivas quanto sociais que comportem
a mudança e o desejo.
Assim, a
responsabilização pela agressividade dos adolescentes em conflito com a lei pode
ser escutada não só na clínica, na vertente subjetiva, mas também nas
manifestações sociais, que gritam através de terrorismo poético, greves e,
porque não, das manifestações dos jovens de periferia, pelas quais também somos
responsáveis por dar ouvidos, como nos advertem Rosa e Vicentin (2012)
a condição paradigmática do sujeito contemporâneo se
potencializa nos adolescentes, dado o encontro problemático entre os seus
processos subjetivos e o discurso do capitalismo avançado (...). Ler o discurso
sobre a violência no seu avesso significa inverter o enunciado do imaginário
social. Nesse caso, a violência funda-se na ruptura dos fundamentos do contrato
social, na perda de um discurso de permanência e de um lugar social que promova
gratificação narcísica que, aliada a exclusão dos ideais e valores do grupo, produzem
o rompimento dos laços sociais e os efeitos disruptivos na subjetividade (Rosa
& Vicentin, 2012, p. 55).
Assim, podemos dizer
que esse trabalho acaba por representar um apelo a uma práxis renovada da
política com auxílio da psicanálise, capaz, através da articulação do trabalho
com a responsabilização jurídica, subjetiva e social, de destampar os ouvidos
para as manifestações dos adolescentes ao não se contentarem com a lei moral e
o laço social instituídos, escutando, num gesto parrésico, o que seus atos
infracionais buscam. De tal forma que, em algum intervalo, eles sejam menos
necessários.
Assim, considerando que a cada
caso renovaremos essas hipóteses, apoiamo-nos em quatro premissas para pensar a
responsabilidade junto a adolescentes em conflito com a lei :
Hipótese 1 - Há
uma supressão do compasso de espera, da produção da fantasia, da tomada de
decisão e, por consequencia, da consolidação de uma solução de responsabilidade
construída pelo adolescente em conflito com a lei para a vida adulta.
Hipótese 2 - Na ausência dessa tomada subjetiva de decisão, o
adolescente parece não se implicar em suas escolhas de vida, não se
responsabilizando por seus atos de vida e de morte.
Hipótese 3 - Essa
implicação exigiria, no plano subjetivo, um trabalho de inversão dos vetores
quanto à causalidade. A pergunta recairia, então, sobre o que não comparece na
cena do crime como vida nua e que, subtraído a ela, a determina e nela engaja o
sujeito.
Hipótese 4 – E, no plano civilizatório, seria necessário o trabalho face ao reconhecimento e ao
respeito ao a-normativo, demarcando novos termos para a ação política.
Apostamos que, pelo ato de responsabilização jurídica, é possivel engajar
sujeito e civilização na construção da responsabilidade subjetiva e social. Entendemos
que seria a partir da perda que a torção realiza em cada plano, subjetivo e
civilizatório, que eles passariam a operar articulados e reconfigurados, com o
tratamento conferido a essa perda e ao gozo a ela correlato. Seriam
modificados, nesse ato, os dois planos, articulados em uma nova resposta ao
mal-estar contemporâneo. A intervenção
com vistas à responsabilização é uma possibilidade que atravessa as três
dimensões, subjetiva, social e jurídica e se apoia no trabalho em rede das
medidas socioeducativas em diferentes níveis, seja o da (1) ampliação no uso da
palavra ; (2) ampliação dos horizontes político-culturais; ou (3)
ampliação do acesso ao circuito do capital.
Assim, nessa gestão dos
corpos pelo risco, não é fácil encontrar “a fórmula e o lugar” (Lacadée, 2011)
para o adolescente autor de ato infracional compor nova presença no laço
social. De um lado, exige percurso que implique o adolescente em sua resposta;
de outro, percurso que implique a civilização diante de sua trama simbólica contemporânea.
Afinal, “a denúncia do universo mórbido do crime não pode ter por corolário nem
por finalidade o ideal de uma adaptação do sujeito a uma realidade sem
conflitos” (Lacan, 1974/2003, p. 128).
Bibliografia
Aberastury,
A. (1981) Adolescência normal. Porto
Alegre: Artes Médicas.
Agamben, G. (2002). Homo
Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo.
BeloHorizonte: Editora UFMG.
Ariés, P.(1986)
História social da criança e da família.
Rio de Janeiro: Guanabara.
Bauman,
Z.(2009). Confiança e medo na cidade.
Rio de janeiro, Jorge Zahar.
Calligaris, C. (2000) A adolescência.
São Paulo: Publifolha.
Cirino, O. (2001). Psicanálise
e psiquiatria com crianças – desenvolvimento ou estrutura. Belo horizonte: Autêntica.
Douville,
O.(2002). Fundações subjetivas dos espaços na adolescência. In Revista da associação psicanalítica de porto
alegre. Ano x, n° 23 . Dezembro, pp. 76-89.
Ferrari,
I. F. (2006) Agressividade e violência. Em PSICologia CLINica, Rio de Janeiro, VOL.18, N.2,
P.49 – 62. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/pc/v18n2/a05v18n2.pdf.
Acesso em 05 de Nov de 2012.
Freud, S. (1905) Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade: transformações da puberdade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud (ESB), vol. VII, Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996.
_________. (1913). Toten Tabu. In: In:
Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB), vol. XIII, Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996.
__________ (1914) Algumas reflexões
sobre a psicologia do escolar. In:______. Totem
e tabu e outros trabalhos. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB),
vol. XVIII, Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.281-288.
___________ (1919). O ‘estranho’. In: In:
Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB), vol. XVII, Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996, p. 275-314.
___________ (1921). Psicologia das Massas a Análise do Eu.
In: In:
Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB), vol. XVIII, Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996.
__________. (1930) O mal-estar na civilização. In: In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud (ESB), vol. XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1997.
__________. (1933). Por que a guerra? In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB), vol. XXII, Rio de Janeiro,
RJ: Imago, 1996.
Gadea,
C. A. (2006) Resenha da “Luta pelo Reconhecimento”. Ciências Sociais Unisinos, jan-abr. Vol.42, n.1. pg 72-73.
Guerra, A. et al. (2009). O desafio do
trabalho com jovens envolvidos com a criminalidade: oficinas comunitárias como
estratégia inovadora na Justiça Social. Cartas
de Psicanálise, CEPP-Vale do Aço/Unipac, a. 4, 2 (6), 200-209.
Guerra, et al. (2012). Violência urbana,
criminalidade e tráfico de drogas: Uma discussão psicanalítica acerca da
adolescência. Psicologia em Revista.
Vol. 18, n. 2, pp. 247-263. Acessado em 29 de marco de 2013: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/P.1678-9563.2012v18n2p247/4696>.
Guerra, A. M. C.
& Martins, A. S. Subjetividade e Política: Psicanálise e Intervenção com
Jovens em Conflito com a Lei. (no prelo).
Generoso,
C. ; Guerra,
A. M. C. (2012).
Desinserção Social e Habitação: a psicanálise na reforma psiquiátrica
brasileira. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental (Impresso), v. 15, p. 524-539.
Harvey, D. (2002). Condição pós-moderna. 11ª. Ed. São Paulo: Loyola.
Honneth,
A. (2003) Luta por reconhecimento: a
gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34.
Lacadée, P. (2011). O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada
das transições: a adolescência. Rio de Janeiro, ContraCapa.
Lacan,
J. (1948/1998) Agressividade em psicanálise. Em Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
_________.
(1949/1998) O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é
revelada na experiência psicanalítica. Em Escritos.
Rio de Janeiro: Zahar.
__________. (1959-1960/1997).
O Seminário, livro 7: a ética
da psicanálise. Tradução: Quinet, A. Rio de Janeiro, RJ: Jorge
Zahar.
_________.
(1965/1998) Ciência e verdade. Em Escritos.
Rio de Janeiro: Zahar.
__________.
(1974/2003)) “Prefácio a ‘O despertar da primavera’”. In: ______.Outros
Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 557-559.
_________.
(1975-76/2007). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro, Zahar.
Lipovetsky, G. (2005).
A Era do Vazio: Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo. Barueri, Manole.
Lopes, A. G. & Saruê, S. (1991). O
Despertar da Primavera... um tempo lógico. Letra Freudiana, ano X, numero 9,n p. 61-67.
Méndez.
E. G. (2006) Evolución histórica del derecho de la infância:? Por
que uma historia de los derechos de la infância?. In:Justiça, Adolescente e Ato Infracional: soioeducação e responsabilização.
São Paulo, ILANUD, pp. 07-23.
Pellegrino, H.
(1987). Pacto Edípico e Pacto Social. Em L. A. Py (Org). Grupo sob grupo (pp. 195-205).
Rio de Janeiro: Rocco.
Poli, M. C.(2005). Clínica da exclusão: a construção do fantasma e do sujeito adolescente.
São Paulo: Casa do Psicólogo.
Rosa, M. D. &
Vicentin, M. C. (2012) Os Intratáveis: o Exílio do Adolescente do Laço Social
pelas noções de Periculosidade e Irrecuperabilidade. In Gurski et al. Debates sobre adolescência contemporânea e o
laço social. Curitiba: Juruá, p. 39-57.
Safatle, V. (2012). Grande
Hotel Abismo: Por uma reconstrução da teoria do Reconhecimento. São Paulo:
Martins Fontes.
Stevens, A.(2004). Adolescência, sintoma
da puberdade. In: Clínica do contemporâneo. Revista Curinga. Escola Brasileira de Psicanálise-Seção
Minas, n° 20, p.27-39.
Zenoni,
A. (2007). Versões do Pai na psicanálise lacaniana: o percurso do ensinamento
de Lacan sobre a questão do pai. Psicologia
em Revista. Belo Horizonte, PUC Minas Gerais, 13(1), 15-26.
Waiselfisz,
J.J. Mapa da Violência 2013. Crianças e Adolescentes do Brasil. Centro
Brasileiro de Estudos Latino-Americanos: Rio de Janeiro, 2013.
Zizek, S. (2009) O Supereu pós-moderno.
[s.n.t].
Nenhum comentário:
Postar um comentário