terça-feira, 6 de janeiro de 2015

CLÍNICA E POLÍTICA INTERROGADAS PELO ATO INFRACIONAL: A CONSTRUÇÃO DO CASO.

CLÍNICA E POLÍTICA INTERROGADAS PELO ATO INFRACIONAL: A CONSTRUÇÃO DO CASO.

Miriam Debieux Rosa 
Aline Souza Martins
Ana Paula Musatti Braga 
Isabel Tatit

Disponível em: Diálogos com o campo das medidas socioeducativas: conversando sobre a justiça, o cotidiano do trabalho e o adolescente. Org: Jacqueline MOREIRA, GUERRA, A. M. C. SOUZA, J. M. P. de. Curitiba: CRV, 2013. 

           
            Este texto põe em destaque a posição do analista a partir daquilo que efetivamente o faz analista – a sua implicação com a clínica em seus inúmeros desdobramentos, desafios e impasses. Escrever a clínica é um ato no sentido psicanalítico do termo –põe em jogo um trabalho na transferência, endereçado e comprometido com uma práxis a ser compartilhada, articulada com elementos singulares de um tempo e lugar que, visitados, permitem a transmissão de um desejo e a manutenção da vitalidade e atualidade de sua prática. Fomos convidadas para a responsabilidade de acolher este endereçamento e relançar seus efeitos, mais um passo na transmissão da psicanálise.
            O caso “Falando pelos muros: um recorte de acontecimento do caso Shake”, descrito por Poliana Rocha Tavares, convoca muitas reflexões e desafios em especial pelas circunstâncias particulares que nada lembram a tradição psicanalítica – trata-se de uma escuta clínica em um contexto institucional ligado à Justiça, com um adolescente em medida sócio-educativa. A cena psicanalítica depara-se com a cena sócio-política, aparentemente distante nos consultórios, e é posta à prova pelos atravessamentos diretos que põem em cheque a possibilidade de sustentação do trabalho analítico. Inúmeros são os pontos de reflexão: a adolescência, o uso e tráfico de drogas, o território com as condições socioeconômicas e desigualdades, o discurso jurídico, o ato infracional e a oferta do atendimento psicanalítico sem demanda prévia.
           Os impasses aqui encontrados denotam a dimensão clínico-política da prática psicanalítica (ROSA,2012/2013) que relança as demandas institucionais, em geral focadas naqueles indivíduos que desorganizam ou atacam as normas institucionais. Como psicanálise implicadana escuta dos sujeitos situados precariamente no campo social, permite desconstruir os modos como são capturados e enredados pela maquinaria do poder e intervém nos laços sociais que atualizam os processos de exclusão em curso.
A interrogação que nos foi formulada refere-se a um traço em particular do caso: Num certo dia Shake chegou antes do horário agendado para o atendimento, indo à sala para procurar as técnicas de referência. Chegando lá ... o adolescente decidiu aguardar a técnica de referência de sua outra medida. Enquanto aguardava começou a escrever nas paredes do prédio com uma caneta hidrocor. Ao chegar para fazer o atendimento, a técnica da LA (liberdade assistida) se deparou com Shake escrevendo na parede e o chamou para conversar, sem saber que ele já tinha feito escritas em todo o segundo andar do prédio.
            Vamos inicialmente pensar as coordenadas que constituem um caso clínico e suas funções na transmissão/criação da psicanálise.

            A construção do caso clínico

           Apresentação, discussão, supervisão de casos clínicos são consideradas o cerne da investigação em psicanálise. Temos visto inúmeras formas e estilos - pode ser tanto uma articulação em torno de um fragmento, como Albert, descrito em Interpretação dos sonhos (Freud, 1900), quanto um relato pormenorizado de diversas sessões, como a descrição que Freud (1909) faz de Hans. Existem casos em que a narrativa gira em torno de personagens literários ou históricos com os quais o escritor-analista nunca teve contato, como a construção que Freud (1906) faz na Gradiva de Jensen ou em seu texto sobre Leonardo Da Vinci (1910). É possível ainda que o analista construa um caso em torno de sua própria análise ou através da supervisão. Os casos podem ser apresentados em grupos ou por meio de textos. Estas diferentes modalidades de apresentação de caso têm funções variadas no campo psicanalítico.
Vamos abordar neste artigo o caso clínico como construção que inclui o analista, instigado em seu desejo na escuta do caso – sem escuta não há caso e permite situar, numa escrita, mais do que uma história, uma posição para o sujeito na ficção fantasmática. O caso revela não só o pesquisado, mas também aquele que escuta e as sinuosidades do campo que transita. “Não seria o caso clínico um entre parênteses, indicando um encontro interrompido entre alguém que fala e outro que escuta no limite do fantasma que o suporta e da teoria que o orienta?”, pergunta-se SOUSA (2000, p.17). O caso não se confunde com a história, não é biográfico: “É ficção clínica, resultado de uma hipótese teórica” (SOUSA, 2000, p 19). Caso significa ocorrência, acontecimento e narrativa, deriva de casu em latim e ptosis em grego, sentido genérico de queda (DUNKER, 2011). Podemos dizer que a construção do caso se dá em torno da queda do sentido e da produção de um enigma para o analista, que o interroga sobre o caso e a partir do qual se produz uma narrativa - ficcional.
Destacamos três aspectos constituintes e enodados na construção do caso clínico, dando realce a três termos: a marca do caso, a construção e a transmissão por uma escrita.
1) A marca do caso (DUMEZIL, 1989), enigma em torno do qual a narrativa do analista é estruturada.
2) O seu caráter de construção, que evidencia o abandono do ideal de busca de uma verdade única; busca a elaboração de um saber na direção tanto da historização do sujeito como da interrogação da teoria;
3) O efeito de transmissão na dupla direção – para quem fala/escreve sobre o caso, remetetransformação da vivência em experiência e quem escuta tem a possibilidade de receber o testemunho e dar endereço para sua circulação.
Estes termos operam em diferentes tempos, e a sua escrita carrega as inscrições e apagamentos destes processos.

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Concluindo o caso e ultrapassando o muro
Por ser atravessado pelo “muro da linguagem”, Shake pode tanto escrever pelas paredes quanto ser falado por significantes por meio dos quais se inscreve no mundo. O adolescente, impossibilitado de falar, atua “ins-crevendo” (junção de escrever com inscrever) nas paredes sua tentativa de fazer cessar a angústia de ser pai. Esse é um fragmento de real que impulsiona tanto a escrita de Shake quanto a construção do caso, pois, “de alguma forma um caso clínico deve tocar algo de real em nossa existência: a relação entre a lei, a morte e o desejo” (DUNKER, 2011, p. 570).
Se tratando de um adolescente em cumprimento de medida socioeducativa é possível pensar que tornar-se pai pode estar relacionado inclusive ao entrelaçamento desses três critérios: passar da posição de filho que deve obedecer a lei para alguém que irá ser um representante da lei para a criança que nasce; a ressignificação da possibilidade de morte, tão próxima para adolescentes envolvidos com o tráfico de drogas; e a reatualização do desejo nessa nova posição de ser pai.
Ao escolher a expressão “falando pelos muros” para nomear o caso, se implica necessariamente um sujeito nessa ação, um sujeito falante, um sujeito da linguagem e, portanto, no laço social. Embora a fala se dê ainda “pelos muros”, isto é, uma fala que não se dá diretamente entre sujeitos, há uma tentativa em ato de escutar esse rabisco na instituição, representante da angústia de Shake.
Possibilitar a abertura para que o sujeito possa inscrever algo da sua singularidade na instituição faz parte da função do analista que se propõe a trabalhar nesses espaços. A instituição é o “sistema de regras que cerca a comunidade de vida” (LAURENT, 2003, p. 84), e nesse sentido que aproximamos do discurso, acabamos todos referidos a ela (a instituição), tanto nos consultórios clínicos quanto nos espaços que reúnem vários sujeitos. O papel do analista nas instituições é, portanto, ser mais um discurso,

mais que um lugar vazio, é aquele que ajuda a civilização a respeitar a articulação entre norma e particularidades individuais. O analista, mais além das paixões narcísicas das diferenças, tem de ajudar, junto de outros, sem pensar que é o único que está nessa posição. Assim como outros, há de contribuir para que não se esqueça, em nome da universalidade ou de qualquer outro universal, tanto humanista quanto anti-humanista, a particularidade de cada um. (...) é preciso recordar que não se deve tirar de alguém sua particularidade, a fim de misturá-lo com todo o universal, em razão de algum humanitarismo ou qualquer outro motivo (LAURENT, 2007, pp.144-145).

Os muros não falam, mas os escritos na instituição viabilizam que os sujeitos falem por meio deles. Dessa forma, não sabemos ainda das determinações - subjetivas e sociais - que colocaram Shake naquele lugar, "do tráfico", mas pelas manifestações nos muros vemos seus efeitos. Logo de início, a ideia do título nos transmite a possibilidade de Shake retomar, através da fala, sua história de vida como um sujeito singular e não como simples produção dos muros imaginários que definiram um lugar alienante para o adolescente, a saber, o lugar de "infrator", “traficante” e “usuário de substâncias”. Cada um de nós é dividido pelo muro da linguagem, que é simbólico. Esse muro não isola um sujeito do outro, mas, pelo contrário o insere no campo social por meio de uma linha divisória que é a linguagem.
A linguagem, os predicados, o discurso com que o sujeito é falado pelo Outro tem menos o caráter preditivo e mais o caráter construtivo. Isso quer dizer que a maneira com que se fala desses adolescentes, a instituição a qual estão referidos, contribui para a construção de como eles se mostrarão para a sociedade

a prisão sintática – um sujeito acorrentado a um predicado – é eterna justamente porque suprime o tempo, transformando o ato em expressão do ser, convertendo a ação em um estado permanete, fazendo do crime um retrato verdadeiro, essencial e definitivo da natureza mesma de João [no nosso caso Shake]. Mesmo que ele mude, a sentença e a prisão o mantém conectado ao mesmo canal, na mesma sintonia do ato criminoso (SOARES, 2011, p.159).

Entendemos, como já se disse, que foi importante na intervenção clínico política da institutiçao, a leitura da escrita na parede que revelava mais do que uma “infração”, era uma tentativa de falar dessa experiência subjetiva e particular. Neste sentido, uma “prática ético-política que propicie a escuta e indique um lugar discursivo que possibilite ao jovem uma posição de fala e outra posição no campo social” (ROSA & VICENTIN, 2012).
A possibilidade de escuta do dizer do ato de Shake provoca uma inversão no imaginário social acerca desses adolescentes, abrindo espaço para a construção de apostas e saídas singulares. Aposta do analista e saída do adolescente. Saída que representa um novo e particular fazer com a instituição, com a linguagem e com os muros que se impõe entre os jovens e um tipo de laço social. 

Bibliografia
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DUNKER, C. L. I. Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo: Annablume, 2011.
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ROUDINESCO, E. Vocabulário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.



[i]Psicanalista, coordena o Laboratório Psicanálise e Sociedade e o Projeto Migração e Cultura USP); coordena o Núcleo Psicanálise e Política (PUC-SP).Coordena a pesquisa Responsabilidade e responsabilização: diálogos entre psicologia, psicanálise e Sistema de Justiça Juvenil (CNPQ). E-mail: debieux@terra.com.br

[ii]Psicanalista, Mestranda em Psicologia Clínica (USP) com o tema da guerra do tráfico de drogas. Graduada em Psicologia pela UFMG. Membro do Laboratórios de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise/Latesfip e Membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade (USP) e do Núcleo Psicanálise e Política da PUC-SP. E–mail: alinesouza.martins@gmail.com

[iii]Psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela USP, doutoranda em Psicologia Clínica pela USP. Membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade da USP e do Núcleo Psicanálise e Política da PUC- SP. E-mail: ana.musattibraga@ajato.com.br

[iv][iv]Psicanalista, doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012). Membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade da USP e do Núcleo Psicanálise e Política da PUC-SP. E mail: i_tatit@hotmail.com


Psicanálise e política: Contribuições metodológicas

Psicanálise e política: Contribuições metodológicas


Andréa Máris Campos Guerra
Professora UFMG (aguerra@uai.com.br ).


Aline Souza Martins,


Disponível em: 
http://borromeo.kennedy.edu.ar/Artculos/CamposGuerrapsicoan%C3%A1lisisypol%C3%ADtica.pdf


RESUMO
Discutiremos elementos conceituais de metodologia de intervenção junto à prevenção à mortalidade juvenil, decorrentes de pesquisas. Apostamos que, feito uma banda de moebius (LACAN, 1961), a dimensão política, determinada pelos fatores materiais e econômicos, e a dimensão subjetiva, determinada pelo inconsciente, são o lado e o avesso de uma mesma posição que refere o sujeito ao Outro. É na torção entre os dois planos que os acontecimentos podem determinar diferentes tomadas de posição. Assim, ambos devem ser considerados quando de intervenções que visem à inserção de adolescentes autores de ato infracional. Trabalharemos três elementos: I) a premissa de que a agressividade pode servir à destruição, mas também pode ser dirigida à construção da civilização; II) o “não”, que caracteriza as formas de resistência ao poder ganha, na psicanálise, uma forma específica (die Verneinung) que nos leva a complexificar o processo subjetivo aí presente; III) as formas de resistência política podem também engendrar o novo, produzindo a superação do status quo ou do circuito da repetição, simultaneamente no plano político e no plano inconsciente. Nessa lógica, o crime representa a posição de fixar-se na dialética agressividade/idealização por meio da aderência a semblantes, insígnias fálicas e gadgets ligados ao crime. Enquanto, oficinas culturais – como a de quadrinhos em nosso caso - pode ser entendida como um ultrapassamento que poderia transformar o ato agressivo e a repetição alienada em um ato criativo, com potencial para romper com a posição simbólica que coloca o corpo dos jovens em direção à morte na “guerra”.
Palavras-Chave: Adolescência, criminalidade, psicanálise, ato.


INTRODUÇÃO
Nesse artigo, buscamos fundamentar uma proposta metodológica de intervenção junto a jovens atravessados pela experiência do crime, em especial o tráfico, com vistas a contribuir com as propostas públicas de combate à violência e mortalidade juvenis dos setores da segurança pública e dos direitos humanos. Usamos como estratégia metodológica a experiência de uma oficina de quadrinhos, realizada junto aos jovens de um aglomerado urbano, utilizando o aporte teórico da psicanálise aplicado ao campo político para fundamentar epistemologicamente o método. Para isso, articulamos noções psicanalíticas a noções políticas.
Valendo-nos de um recurso topológico, a faixa de Moebius, partimos da premissa de que a dimensão política e a dimensão inconsciente são os dois lados correlativos de uma mesma lógica de agenciamento do funcionamento do sujeito no laço social. Nesse sentido, uma intervenção que opere mudança em um plano acarretaria mudança no outro, favorecendo a consolidação de novas posições, diferentes daquelas atreladas à predicação que o crime engendra. Em outros termos, supomos que intervir no campo político afeta o sujeito, assim como intervir no plano inconsciente afeta o morador da polis.
Supomos assim que esse movimento, complexo e moebiano, pode ser pensado a partir de três aspectos subjetivo-políticos que explicitam os processos políticos e inconscientes em jogo e permitem, em um outro passo, consolidar um método ainda em construção. São eles: I) a premissa de que a agressividade pode servir à destruição, mas também que é necessária e pode ser dirigida à construção da civilização; II) o “não”, que caracteriza as formas de resistência ao poder ganha, na psicanálise, uma forma específica (die Verneinung) que nos leva a complexificar o processo subjetivo aí presente. Quando negamos com veemência uma relação, um objeto, um ideal, pode ser que ele esteja, exatamente, articulado no plano inconsciente a uma forma de resposta ao desejo; III) as formas de resistência política podem também engendrar o novo, produzindo a superação do status quo, rompendo com o instituído e engendrando algo novo, simultaneamente no plano inconsciente e no plano político.
A palavra permanece como elemento central e mediador nas intervenções com vistas ao combate à violência e mortalidade juvenis, mas carece de ser imbuída, ou a ela agregada, valor político e carga de afeto, de forma que engaje o sujeito, com seu corpo e com sua representação na vida da cidade.

 A EXPERIÊNCIA DA OFICINA DE QUADRINHOS OU A METODOLOGIA
A fim de realizarmos a devolução de dados da pesquisa “A incidência da figura paterna na subjetividade de adolescentes envolvidos com a criminalidade” promovemos junto ao Programa de Controle de Homicídios Fica Vivo![1] uma oficina de quadrinhos com jovens envolvidos com o tráfico em um aglomerado urbano e central da cidade de Belo Horizonte (MG). No momento da devolução, os jovens que participaram mais ativamente da fase da coleta de dados estavam presos, mortos ou foragidos. Assim sendo, a devolutiva aconteceu com um novo grupo de rapazes, mais jovens, sendo que conhecíamos apenas um deles da fase anterior, que ocorreu menos de um ano após o fim da pesquisa de campo.
Os dados referentes à investigação inicial foram coletados através de grupos de conversações psicanalíticas (SANTIAGO, 2009) em três regiões desse aglomerado, selecionadas devido à alta incidência de homicídios entre jovens e à acessibilidade aos pontos de venda de drogas ilícitas, cujo acesso foi favorecido pela parceria com o Programa Fica Vivo!. Em cada região, os jovens se alternavam na participação, havendo sempre algumas presenças constantes. Coletamos os dados durante o segundo semestre de 2010, abordando em cada região cerca de 15 jovens, num total aproximado de 45. Foram registradas entre três a cinco conversações em áudio em cada região, a partir de uma dúzia de visitas, aproximadamente, aos locais selecionados. Os jovens receberam pseudônimos, não tendo sido identificados, conforme exigência do Comitê de Ética que aprovou a realização da pesquisa. Esse material gravado foi posteriormente transcrito e submetidos à análise de discurso, apoiada nas elaborações teóricas de Lacan (1957), sem perdermos de vista o plano econômico e político da situação.
A oficina de quadrinhos aconteceu em uma das regiões estudadas com cerca de doze jovens, com a coordenação de dois profissionais e um aluno da psicologia e dois artistas quadrinistas. Os encontros aconteciam duas vezes por semana, durante os dois primeiros meses, semanalmente no terceiro mês, e quinzenalmente no último, num total de quatro meses de duração. Sempre no aglomerado, o local variava conforme a atividade, sendo utilizadas prevalentemente uma laje e uma varanda de duas casas de jovens. Seus procedimentos incluíram a construção do enredo de uma revista de quadrinhos, com construção dos personagens, story board e trama, tendo sido utilizados recursos como discussão de filmes, raps, visitas a atelier de quadrinistas, aulas técnicas de desenho, pesquisas na internet, entre outras. Esse processo culminou na confecção e apresentação pelos jovens de um vídeo e da exposição do material visual da história dos quadrinhos em evento universitário na UFMG. Pois bem, o que essa metodologia nos ensina no trabalho com os jovens? Antes de respondê-lo, entendamos sua lógica.

 A FAIXA DE MOEBIUS OU A LÓGICA DO MÉTODO
Lacan apresenta a faixa ou banda de moebius em seu seminário “A identificação”(1961-62), assinalando a divisão do sujeito, que expõe sua dimensão mais íntima, moebianamente articulada ao campo do Outro, expondo-o no espaço público. Lacan identifica, assim, o sujeito, entendido como determinado pelo inconsciente, ao corte que a faixa de moebius apresenta. Em sua essência, a banda é o próprio corte, podendo, por isso, ser tomada como suporte estrutural da constituição do sujeito, pensado como dividido por aquilo que ultrapassa sua consciência. Assim, em sã consciência, um sujeito pode afirmar sua alegre e orgulhosa certeza pela posição criminosa e, ao mesmo tempo, ter pesadelos com a cena do crime. Será o elemento temporal que permitirá situar o ponto de corte. Vejamos sua representação abaixo.
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Fig 1. Faixa ou Banda de Moebius
É na torção, responsável pela inversão desses dois planos, que os acontecimentos podem determinar tomadas de posição em que os dois lados colidem, interferindo nas respostas que o sujeito constrói ao longo de sua vida. Nesse corte que torce a faixa, o lado de dentro torna-se, ao mesmo tempo externo (acompanhem o trajeto das formigas na figura 1), a partir do ponto de perda que o corte engendra.
Em nossa aplicação dessa lógica, a face pública é associada à dimensão política, tomada como teoria estratégica que trata da finalidade de uma prática discursiva. Enquanto a dimensão subjetiva é tomada na qualidade de inconsciente estruturado como linguagem. Para os jovens da oficina de quadrinhos, a dimensão política estaria relacionada a um ato que rompesse o ciclo repetitivo que os reenvia a posição paradoxal de exclusão incluída, relacionada à estrutura de poder a qual estão submetidos pelo discurso capitalista. Na dimensão subjetiva, porquanto inconsciente, estaria relacionada ao corte que institui um antes e um depois, modificando a posição do sujeito quanto à forma de obter satisfação e se posicionar face ao Outro, ganhando valor de acontecimento-sujeito.
Valendo-nos, portanto, da banda de Moebius nas intervenções com esses jovens, apostamos que haverá sempre a construção de uma resposta que depende simultaneamente da dimensão subjetiva e política em questão. O tráfico representaria a posição de fixar-se na dialética agressividade/idealização por meio da aderência aos semblantes oferecidos pelas insígnias fálicas e gadgets ligados ao crime. A oficina de quadrinhos, por outro lado, poderia ser entendida como um ultrapassamento alternativo que transformaria o ato agressivo e a repetição alienada em um ato criativo com potencial para romper com a posição simbólica estabelecida no laço social que os leva muitas vezes à morte na cena da “guerra”, oriunda de sua inserção no tráfico.

A FACE POLÍTICA
Faremos uma analogia entre as manifestações políticas globais, Occupy e Primavera Árabe, e a política local dos jovens de periferia de Belo Horizonte, representada pelo Duelo de MCs e a Oficina de Quadrinhos. Nosso objetivo não é descrever em detalhes esses quatro movimentos, mas sim apontar possíveis aproximações entre as relações políticas encontradas em nível global e local. O movimento Occupy Wall Street (OWS) é um protesto internacional contra a desigualdade econômica e social. Seu principal interesse é denunciar as grandes corporações e o sistema financeiro global que controlam a desigualdade na distribuição de recursos. O Occupy começou pelo grupo ativista canadense Adbusters e inspirou a primavera Árabe, especialmente os protestos do Cairo na Praça Tahrir e os Indignados da Espanha, dois movimentos políticos importantes do mesmo período.
Já os protestos no mundo árabe em 2010-2012, que também ficaram conhecidos como a Primavera Árabe, são uma onda de manifestações no Oriente Médio e no Norte da África quem impulsionaram revoluções em diversos países, como Tunísia, Egito, Libia, Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Síria, Omã e Iémen. As manifestações tiveram início na Tunísia em dezembro de 2010, após o ato de um jovem comerciante que ateou fogo ao próprio corpo em protesto aos altos impostos e às más condições de vida no país. Segundo Mark LeVine, autor de Heavy Metal Islam (PERES, 2011), os protestos políticos no Oriente Médio foram canalizados pelo rock e pelo rap. O professor da Universidade da Califórnia estava na Praça Tahrir, no Cairo, durante os protestos que levaram à queda do ditador Hosni Mubarak e defende que a música antecipou o movimento político.
A revolução árabe, portanto, foi possível através da indignação social, fomentada pelas músicas dos rappers, que comportava um potencial de ato político. Esse ato seria entendido aqui não como acting out ou passagem ao ato[2], mas um ato análogo ao ato psicanalítico, porém marcado por efeitos no campo político. De acordo com uma das leis mais básicas da física Newtoniana é necessário um montante de energia para colocar um corpo que se encontra no estado de equilíbrio (inércia) em movimento. Na psicanálise lacaniana, o ato é usado para produzir respostas novas no sujeito que o tirem da compulsão à repetição por inserir pontos de indeterminação, “incite uma interpolação da repetição dentro da transferência” (DUNKER, 2011, p. 330). No plano clínico, ele pode ser a passagem de analisante a analista, o início de uma análise ou um tipo de intervenção clínica como a interpretação, construção e manejo da transferência. Comporta, entretanto, sempre um gesto simultaneamente ético-político (ato político), metodológico (um fazer) e técnico (uma intervenção) que pretende fundar o ato verdadeiro, envolvendo a criação de novas coordenadas simbólicas pela apresentação do real (DUNKER & PROPHETA, 2012).
No discurso “The violent silence of a new Beguinning”, Slavoj Zizek (2012) caracteriza os ocupantes de Wall Street como tão violentos quanto Gandhi por quererem dar um basta no modo como as coisas são feitas, e acrescenta “mas o que é essa violência quando comparada àquela necessária para sustentar o suave funcionamento do sistema capitalista global?” (p. 17). Com a ocupação e o “não” dos jovens há, pois, a tomada de um compromisso político e com ele a esperança de que esse ato produza algo novo. Ato agressivo, no sentido de uma força que é usada para romper com uma posição de equilíbrio, que pode ser visto como uma das marcas da juventude e da adolescência. No contexto social, esse ato pode representar um impulso a mobilizações políticas, como a resistência às ditaduras do Brasil, da Argentina e, mais recentemente, a Primavera Árabe.
Enquanto, no nível individual e singular, pode implicar um ato por parte do adolescente que, diante da irrupção do corpo púbere e sua insuficiência em lidar com ele precisará construir um novo nome para si, uma resposta subjetiva ao embaraço provocado pelo encontro com a sexualidade. Diante dessa experiência púbere de reencontro com algo que não tem nome, o sujeito precisará construir uma solução, uma forma de resposta, elaborada na adolescência. O Nome-do-Nome-do-Nome (NNN) é uma referência que Lacan (1974) retoma dos hebreus para falar desse tratamento que damos ao que não se representa, ao que não se pronuncia, como o nome de YAHVE. Diante disso que ultrapassa a possibilidade de resposta do púbere, é preciso colocar um ponto, indicar um vetor, a partir do qual ele irá romper com as relações endógenas da família e procurar no laço social uma posição para si no mundo dos adultos, no plano da vida pública.
A revolução da Tunísia começou após a manifestação dramática do jovem que se mata em praça pública dizendo um não radical contra as condições de vida às quais estava exposto. Esse triste martírio teve como efeito mobilizar uma onda de revoltas devido à identificação das pessoas com as causas que levaram o jovem a sublinhar sua indignação por meio desse ato. A violência da qual ele se vale, sem mediação, só pode ser entendida como reação, agora ativa, contra uma agressividade maior que toda a população estava sofrendo de forma passiva. Portanto, essa passagem, que exige uma mudança de posição, depende de uma violência inicial com o potencial de romper com o estabelecido e criar o espaço para que algo novo possa surgir. Entretanto, a diferença entre o jovem que se manifesta sozinho e os protestos que se seguiram é uma mediação simbólica da violência do grupo que, pelo laço social, é capaz de fazer política se protegendo minimamente da autodestruição.
Como Freud (1933 [1932]) nos lembra, em “Por que a Guerra?”, a violência nua e crua, física, foi, ao longo do processo civilizatório, sendo substituída pela superioridade intelectual, assim como a morte do inimigo por sua subjugação e domínio em vida. A regra do mais forte apenas encontrando oposição na união dos fracos ou na força da comunidade. A única diferença real entre a violência da força e a violência da lei residiria no fato de que aquilo que prevaleceria não seria mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade, cuja coesão passa, então, a ser necessária (p. 247).
Assim também podemos entender, analogicamente, os jovens de periferia que muitas vezes acabam envolvidos pelo tráfico de drogas e pela morte, em busca de uma mudança de posição subjetiva no cenário público. A violência que os impulsiona nessa busca culmina, como eles mesmos descrevem, rapidamente nos três Cs – cadeia, caixão ou cadeira de rodas. Esta via poderia ser orientada como uma luta legítima de resistência à tirania que não culminasse nos altos índices de homicídios entre eles? Ainda como assinala Freud (1933 [1932]), contra a guerra ou a destruição no plano político, algumas soluções mediadoras podem se levantar. Dentre elas, ele destaca o desvio da pulsão agressiva (pulsão de morte), ineliminável do homem, por dois dos vínculos emocionais a ela relacionados: por oposição, a pulsão de vida (finalidade sexual) ou por correlação, a identificação.
A oficina de quadrinhos, nessa lógica, pretende colocar o ato agressivo no laço social fazendo-o produzir uma política que operaria ao avesso do discurso capitalista, com potencial para fazer a torção da exclusão, sem reprimir a agressividade e respeitando as iniciativas de resistência dos jovens. Isto, pois, introduz um desvio na circularidade do discurso, usando a agressividade na arte para promover o laço dos pares no morro – aspecto fundamental para pensarmos a presença da psicanálise no campo das políticas públicas, em especial no da segurança pública e dos direitos humanos.

A FACE SUBJETIVA
Extraímos, enfim, três elementos na composição do método que articula subjetividade e política nesse contexto: o ato agressivo como potencial de criação, intervenção e construção social; o estatuto do “não” através do qual os jovens resistem às diferentes formas de opressão e exclusão, e, finalmente, a criação do novo, como efeito-causa desse processo.
Assim, tomemos, em primeiro plano, a premissa freudiana de que a agressividade pode servir à destruição, mas também que é necessária e pode ser dirigida à construção da civilização. É assim que se fazem as revoluções no plano político e se engaja a pulsão de morte (gozo) no plano inconsciente, que se torna, então, ligada a um objeto ou ideal. No que toca à dimensão inconsciente, Freud (1930 [1929]) nos lembra, que é necessária certa cota de agressividade na própria construção da civilização. Para ele, toda energia pulsional ligada a uma representação tende à descarga que gera satisfação e alívio ao aparelho psíquico. Há, entretanto, certa cota que não encontra vias de se fazer representar, insistindo repetidamente em seguir caminhos que não conduzem à satisfação, mas induzem ao sofrimento. Elas são conhecidas por pulsão de morte, enquanto as outras por pulsão de vida.
Freud, entretanto, nos adverte que elas estão amalgamadas, ligadas uma à outra como contraforças, pois isoladas tenderiam à estabilidade do sistema, que culminaria na morte. Portanto, não se trata de uma força do bem e outra do mal, uma que só constrói e outra que destrói, mas, antes, do jogo de forças que se estabelece permanentemente entre elas. Ele não propõe um modelo maniqueísta em que a pulsão de vida estaria a favor da vida e a pulsão de morte dirigida à desconexão apenas. É necessária a relação de empuxo entre as duas, pois, isoladas, tanto a pulsão de vida quanto a de morte levariam mais rapidamente um corpo à êxtase, à nirvana, à morte. Assim, a luta e a competição são necessárias ao desenvolvimento da vida coletiva, exigindo uma cota de agressividade para se realizarem. É difícil para o homem abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão (FREUD, 1930 [1929], p. 136).
A questão central, para a metodologia em discussão, é como encontrar vias de desvio da pulsão de morte, quando ela se encontra exacerbada na experiência do sujeito com a alteridade. Daí a ideia central de oferta de outras possibilidades de manifestação do ato, através do ato criativo, que impulsiona o corpo em outra direção que não a morte, por um lado. E, por outro, a apresentação de um novo campo de identificações através do qual o sujeito pode se escrever na cena política local, valendo-se de novas insígnias e ganhando visibilidade sem o uso da ameaça e da força bruta letal.
Na segunda dimensão da face subjetiva, avançamos na discussão do “não” como presença em toda forma de resistência. Entretanto, o “não”, que caracteriza as formas de resistência ao poder ganha, na psicanálise, uma forma específica, a Verneinung, que nos leva a complexificar o processo subjetivo aí em jogo. Para a psicanálise, o “não” é uma espécie de atestado da incidência do inconsciente, um “made in inconsciente”, como brinca Freud (1925). Quando, pois, negamos com veemência uma relação, um objeto, um ideal, pode ser que ele esteja, exatamente, articulado no plano inconsciente a uma forma de resposta ao que desejamos.
No plano inconsciente, o “não” (ou die Verneinung) constitui um modo de se tomar conhecimento daquilo a que o sujeito não acede, ao que está fora de seu alcance cognitivo ou consciente, ao que está recalcado. Trata-se de uma suspensão do recalque, mas nem por isso uma aceitação do recalcado, uma suspensão do juízo ou da censura, que permite ao sujeito acessar elementos inconscientes, mas ao preço de denegá-los, evidenciando que a função intelectual está separada do processo afetivo. “A Verneinung é da ordem do discurso, e concerne ao que somos capazes de fazer vir à tona por uma via articulada” (LACAN, 1955-56/1992, p. 101).
Assim, o ato dos jovens não deve ser tratado de uma maneira asséptica, como se a sociedade não necessitasse de algo da ordem da agressividade para se modificar. Ao invés de iniciativas repressivas, podemos articular, no plano das políticas públicas, ações estratégicas que promovam outras referências, outros ideais, outros modos de operar e outros objetos, para os quais o jovem possa dirigir sua capacidade de resposta e laço. Nesse sentido Dunker e Propheta (2012) citam alguns teóricos que têm pensado a violência e o ato, não em uma perspectiva que os contrapõe à paz, mas como um potencial para a mudança, como Vladmir Safatle, que defende o ato revolucionário como aquele que admite a indeterminação na qual um sujeito pode reconhecer em si próprio um outro. Ou ainda Alain Badiou que chama de “paixão do Real” a lógica de que, se alguém defende a igualdade, os direitos humanos e a liberdade, não deve se esquivar da coragem de fazer valer esses princípios.
O “não”, assim, assinalaria uma aposta do sujeito, uma tomada de posição em ato, na medida em que é sempre pelo ato da fala que nos engajamos no desejo. Mas poderia, como acabamos de ver, assinalar o engodo do eu que nega o desejo ao racionalizar a relação com o recalcado. Essa dupla forma de resistência merece ser considerada na metodologia que discutimos, para evitar que a radicalidade da experiência desejante não seja confundida com uma espécie de erro de cálculo, que faz com que jovens percam a própria vida.
Finalmente, numa terceira dimensão, é preciso entender como outras formas de resistência, pacíficas, culturais, artísticas e políticas, engendram o novo. Para exemplificar a aplicação desses conceitos no âmbito social tomamos novamente o movimento Occupy, no qual há uma tomada da discussão que se abre pelo negativo, pela recusa do modelo de vida imposto pelo discurso do capitalista.
Devemos resistir precisamente a uma tradução assim apressada da energia das manifestações para um conjunto de demandas pragmáticas “concretas”. Sim, os protestos realmente criaram um vazio – um vazio no campo da ideologia harmônica -, e será necessário algum tempo para preenchê-lo de maneira apropriada posto que se trata de um vazio que carrega consigo um embrião, uma abertura para o verdadeiro Novo”(p.18).

Assim, também, no plano inconsciente o trabalho da fala permite dar forma pela palavra (significante) ao vazio central (das Ding) que, sem contorno, devasta e avassala o sujeito. Tal qual no trabalho do oleiro, que forja um contorno de argila dando forma ao vazio central do vaso; assim também o sujeito, ao modelar o significante (a palavra/a representação), introduz na realidade uma tela que circunscreve sua posição no mundo e exclui outras, sendo impulsionado, a partir de então, por essa conformação. O reencontro com essa dimensão do vazio, com o real (tyché), rompe com o circuito repetitivo de satisfação (automaton), obtido pela fórmula originária (fórmula da fantasia) que o sujeito encontrou para jogar com ela na cena simbólica, permitindo novas formulações sobre seu ser e suas relações com os objetos e ideais.
Dessa forma, a produção do novo como acontecimento que rompe o circuito da repetição (significante) (automaton) se realiza a partir do encontro com o real (tyché), com uma dimensão não articulada, não prevista e inesperada, que surpreende o sujeito e instala novo circuito para a satisfação. Esse (re)encontro afeta, portanto, os dois planos simultaneamente, implicando em nova tomada de posição subjetiva e política.

ENTRELACES ENTRE A FACE POLÍTICA E A FACE SUBJETIVA
Algumas manifestações populares são exemplos de manifestação da política local que comportam esses três aspectos metodológicos destacados. O movimento dos MCs de Belo Horizonte, em Minas Gerais, ocupou o centro velho da cidade para a promoção do “Duelo de MCs” – iniciativa que leva para o “asfalto” a linguagem e cultura da população marginalizada dos aglomerados. Através destes duelos de rap, jovens da periferia fazem discussões políticas sobre a música, a exclusão, o ambiente (Rio + 20), os espaços públicos, a educação e o que mais for de interesse deles ou estratégico para o movimento. Esse tipo de manifestação criativa leva em consideração a subjetividade dos manifestantes expondo não apenas suas marcas culturais, como também suas formas de gozo. Na torção, pode-se perceber também o caráter político, expresso pelo valor econômico-social da possibilidade de entrada na discussão quanto ao sistema de governo.
Assim também a oficina de quadrinhos pode ser entendida como a busca por um ultrapassamento que transforma o ato agressivo direcionado ao outro, jovem da “boca” rival, e a repetição alienada da “guerra”[3], em um ato criativo com potencial para romper com a posição estabelecida no laço social. Se tomarmos o fenômeno social do ato agressivo dos jovens de periferia através do crime é possível pensar que esse ato pode ser entendido como elemento de propulsão de mudanças táticas para atingir a estratégia de modificação da posição imposta pelo discurso capitalista[4].
Nesse sentido, ambos os grupos, movimentos de periferia e as revoltas de 2011, se encontram submetidos à mesma política da ideologia capitalista e às mesmas relações de poder da estratégia. Entretanto as táticas de resistência adotadas são diferentes.  Para os que estão no asfalto, a tática é ocupá-lo; para os que estão no morro, a violência acaba como agressividade, sendo desviado do Outro para atingir o outro. Ou seja, é como se, em Totem e Tabu (FREUD, 1913 [1912-13]), os irmãos resolvessem atingir uns aos outros, lutando por suas reivindicações de maneira desordenada e destrutiva, e não ao Pai da Horda, estabelecendo nova ordenação dos corpos e das relações de poder.

CONCLUSÃO
 Para que uma revolta possa romper com as posições predeterminadas de grupos na sociedade, é preciso que o ato agressivo seja capaz de fazer laço e ter um objetivo político determinado, que seja possível através de diferentes estratégias. Podemos entender que uma das faces da entrada na “guerra” do tráfico é a busca por melhores condições de vida, pela saída da invisibilidade e, assim, por alguma forma de presença reconhecida no laço social. Essa busca não deixa de ser uma manifestação política. Entretanto, ao pegar em armas para atingir a estratégia de mudar as relações de poder, eles se voltam uns contra os outros, na figura dos rivais de outro território e, assim, a tática fracassa, pois é desviada, voltando a cumprir os ideais da política em que estão submersos.
Na face subjetiva, mudam os semblantes de que se valem para participar da cena pública, mas não sua forma de gozo, de obtenção de satisfação. Permanecem submersos aos ideais alienantes do Outro da cultura local, passando de revoltados ou indisciplinados para temidos. O que aparece no cenário local com nova aparência, a do criminoso, apenas reedita o fracasso escolar, a errância familiar e o desamparo. Permanecem servos de uma mesma ordem que os inclui pela exclusão. Alienados aos significantes mestres do crime, nesse caso o tráfico, repetem o circuito que os aloja num gozo mortífero.
O desvio desse ato agressivo para respostas que façam laço pode funcionar como possibilidade de criação de novas perguntas a serem feitas. Segundo Zizek (2012),
Devemos tratar as reivindicações dos protestos de Wall Street de maneira semelhante: intelectuais não devem tomá-las inicialmente como reivindicações e questões para as quais precisam produzir respostas claras e programas sobre o que fazer. Elas são respostas, e os intelectuais deveriam propor as questões para elas. A situação é como a da psicanálise, em que o paciente sabe a resposta (seus sintomas), mas não sabe a que ela responde, e o analista deve formular a questão. Apenas por meio desse trabalho paciente, surgirá um programa (p. 25).

Com a aplicação dessa lógica metodológica foi possível pensar a dimensão política, determinada pelos fatores materiais e econômicos, e a dimensão subjetiva, determinada pelo inconsciente, como uma banda de Moebius, o lado e o avesso de uma mesma posição que refere o sujeito ao Outro. Como quadrinho, que irá circular por todo o morro, pretende-se fazer circular o ato agressivo fazendo laço entre os pares de forma a que se torne possível que uma nova pergunta se escreva, tanto no contexto histórico e social de extermínio desses jovens, como na singularidade de cada um deles.

BIBLIOGRAFIA
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DUNKER, C. L.  PROPHETA, B. O Capitão Nascimento nas mãos de Robespierre: a violência divina e o abismo do ato político. Disponível em http://zagaiaemrevista.com.br/o-capitao-nascimento-nas-maos-de-robespierre-a-violencia-divina-e-o-abismo-do-ato-politico/. Acesso em 31 de ago 2012.

 

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ZIZEK, S. O violento silêncio de um novo começo. In Occupy. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2012.




[1] Programa da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais – SEDES.
[2] Acting out e passagem ao ato e ato analítico
[3] Guerra nesse contexto é a denominação adotada pelos jovens de periferia para se referirem à disputa armada entre territórios dentro dos próprios aglomerados.
[4] Von Clausewitz, teórico da estratégia, utiliza três conceitos que mais tarde serão usados por Lacan em seu texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, de 1958: a estratégia, a tática e política. Para Clausewitz, primeiramente, a política consiste nas decisões de como usar da guerra para viabilizar o alcance dos objetivo políticos; já a tática comporta as considerações relativas ao emprego do meio para os propósitos do enfrentamento: uso sucessivo ou simultâneo da forças, o modo de combate cerrado ou a distância e o timing de conversão de um ato destrutivo para um ato decisivo; e a estratégia seria a série de considerações e decisões relativas ao emprego dos enfrentamentos para a produção dos propósitos específicos de uma determinada guerra.