“Mas Dona Flor já não
sabia aconselhar ninguém,
nem a si própria, perdida em confusão.
Não era mais
uma pessoa só e
igual, inteira e
íntegra: estava dividida em duas, a honesta e
a salafrária, seu reto espírito de um lado, do
outro a matéria
em ânsia. Um desacordo.”
Jorge Amado
Palavras-chave: Identidade,
Estereótipos Femininos, Dona Flor e Seus Dois Maridos.
Introdução
Pretendo
analisar a “identidade metamorfose” (Ciampa, 1989) e contraditória da
personagem Dona Flor, protagonista da obra renomada de Jorge Amado, “Dona Flor
e seus dois maridos”.
O objetivo
deste trabalho é explorar a identificação controversa de Dona Flor, e com ela
de todas as mulheres. Utilizarei para tanto, teorias de identidade e gênero,
tendo como documento a obra literária de Jorge Amado e algumas letras de
músicas contemporâneas ao tempo fictício da história.
A história de
Jorge Amado é também a busca de Dona Flor por sua identidade, pois, a
protagonista agrega em si as três faces femininas: a puta, a doméstica e a
virgem (Jacobina, 1998) que em determinado momento fazem a personagem entrar em
crise. A história termina quando Flor aceita um self, composto ao mesmo tempo
de várias faces, nada estanque e nada estável, mas cheio de contradições e
dialética (Ciampa, 1989).
A Obra
Dona Flor é uma
mulher da mais inquestionável moral, discreta, trabalhadeira e criada para ser
uma boa esposa, como era de costume entre as mulheres das décadas de quarenta e
cinqüenta. A personagem apresenta uma grande preocupação ao longo da história
com sua imagem, o que retrata a cobrança da sociedade sobre as mulheres desta
época, impelidas a conter sua sexualidade, serem submissas, delicadas no trato,
puras, ter capacidade de doação e saber prendas domésticas e habilidades
manuais (Baisoli-Alves, 2000)
Seu primeiro
marido, Vadinho, é um perfeito representante da malandragem. Adepto à jogatina
batia ponto nos cassinos praticamente todas as noites e também não faltava aos
cabarés e os bares. Nunca fez parte do seu itinerário o trabalho, chegando até
mesmo a bater na mulher em busca de dinheiro para o jogo. Entretanto, como todo
bom malandro, Vadinho também era tido em grande estima pelos companheiros e
pelas mulheres. Os companheiros o admiravam pela sua simpatia e alegria
contagiantes, já as “donzelas” o consideravam como um verdadeiro professor, na
arte obscura sob os lençóis, (no caso de Vadinho, sem lençóis).
Vadinho é o
representante de um tipo de masculinidade “alternativa”, o malandro. Ele não se
encaixa totalmente no ideal de masculinidade norte-americana e brasileira
descrita por Kimmel (1997) na citação de Nascimento e Trindade (2005). Esse
ideal, chamado de masculinidade hegemônica, é caracterizado pelo “provedor, sexualmente ativo, rude, bem
sucedido financeiramente e não emotivo” (Nascimento & Trindade, 2005).
Entretanto, é possível perceber alguns traços descritos acima presentes em sua
personalidade, como, a virilidade exacerbada, dentro e fora de casa. Também é
característica deste personagem o apresso das pessoas do mesmo sexo, mostrando
uma valorização da sua figura e um “jeitinho” malandro de sempre se dar bem.
O primeiro
marido de Dona Flor morre no início da história, deixando-a viúva ainda moça,
cheia de vida e ardendo em desejo. A partir desse momento começa a luta da
personagem, dilacerada entre a moral e o desejo. A angústia só terá fim, quando
Flor encontra seu segundo marido, o farmacêutico Teodoro.
Teodoro parece
ser o oposto de Vadinho. Homem trabalhador, preocupado, gentil e apaixonado.
Sem vícios, prefere ficar em casa a sair, e é incapaz de ser infiel, “para ele só existem duas coisas sagradas
nesse mundo: dona Flor e a música. Pela esposa e pelo conto do fagote, se
preciso fosse, sacrificaria a farmácia e benefícios, teses de ciência e seu
conceito na sociedade. Homem direito, exemplo dos maridos.” Infelizmente o
segundo também tem suas falhas, respeitador até de mais, organizado até de mais
e provedor até de mais... Teodoro é o que a vizinhança irá chamar de o marido
ideal, atencioso com a esposa, leva-a para o cinema, faz visitas a parentes e
amigos e cumpre com modéstia suas obrigações.
Essa oposição
entre os dois maridos pode nos levar a pensar que Teodoro teria uma
masculinidade hegemônica, mas ele também possui um tipo de masculinidade
subalterna. Apesar de ser um homem grande, autônomo, provedor, zeloso com a
família e sentimentalmente contido, Teodoro não é viril, nem dentro nem fora de
casa e não é bem visto pelos homens do bairro. Assim, podemos perceber que a
masculinidade, assim como a feminilidade, se expressa de diversas formas e
nunca alcança totalmente o padrão ideal, que seria a masculinidade hegemônica
valorizada na sociedade americana atual (Nascimento e Trindade, 2005).
Dona Flor é
feliz no segundo casamento, porém, algo lhe falta. Ela não é inteiramente
satisfeita e completa. Um dia, depois de reclamar no íntimo a presença de
Vadinho, ele retorna em espírito para satisfazer o desejo de Flor. Nossa
protagonista então, se vê com dois maridos, com “direitos” iguais, segundo ela,
e igualmente donos do seu desejo. Flor não sabe como proceder, estaria traindo
Teodoro se ficasse com Vadinho? E Vadinho, ainda tinha algum direito? E ela,
sua moral impecável e o respeito a seu devoto esposo? Como proteger sua imagem
de boa esposa e a testa do seu santo marido, que corre tão grande risco de ser
enfeitada com chifres, presentes do desejo?
Flor: doméstica, virgem e puta
A imagem
feminina, ou a representação social da mulher é trabalhada por muitos
estudiosos do gênero. Os principais estereótipos identificados são a “puta” e a
“santa”, ou, na visão dos homens, a parceira “de casa”, “de fora” e a “da rua”
(Salem, 2004). Trabalharei aqui com o conceito de Eloá Jacobina que identifica
três identidades femininas nas letras de canto-cantiga, a “puta”, a “doméstica”
e a “virgem” (Jacobina, 1998). Optei pela representação social da mulher na
música, pois considero as letras como importante documento que nos permite
analisar a sociedade dentro de sua cultura, e pretendo exemplificar algumas
relações lançando mão desse material.
Em
alguns momentos pontuais da obra é possível verificar uma grande identificação
de Flor com determinados estereótipos, mas conforme a história caminha para o
fim estes acabam oscilando e coexistindo.
A primeira face
feminina suscitada na história é a “virgem”. Ela condiz com imagem da mulher
“onírica” do samba, descrita por Del Priore como a inexistente, ideal, pois é
construída com imagens românticas (Del Priore, 2006). Estas imagens nos remetem
à mulher do ultra-romantismo, impossível e etérea, descrita nos poemas de
Álvares de Azevedo, “Ó minha amante,
minha doce virgem, eu não te profanei, tu dormes pura: no sono do mistério,
qual na vida, podes sonhar ainda na ventura.”(Azevedo, Virgem Morta).
Flor assume a
identidade de “virgem” intocável quando ainda é solteira. Ela se mostra
distante dos sentimentos e turbulências da adolescência não se preocupando com
namorados e casamento, mesmo com a insistência de sua mãe Rozilda. Outro
momento em que Flor assume essa postura é quando se torna viúva. Nesta
circunstância, porém, há um movimento da própria Flor na intenção de “vestir
essa roupagem”, que, ao seu ver, é própria de uma viúva de respeito. Essa
movimentação da personagem pode ser entendida como uma resposta aos anseios da
comunidade em que vive, como a protagonista não quer ficar “na boca do povo”,
ou “mal falada” ela tenta sepultar seus desejos junto com o marido, no intuito
de preservar o ideal de mulher direita, mulher de um homem só. Segundo
Baisoli-Alves, esses mecanismos controle começam desde a infância e são
exercidos por meio da ameaça de retirada de afeto, ameaça de abandono e
solidão, castigo dos céus, remorso e culpa (Baisoli-Alves, 2000).
É interessante
notar o caráter de controle social exercido pela fofoca, em que o medo da fala
das companheiras modifica o comportamento de Flor e a induz a ser uma viúva de
respeito (Cordeiro, 2007).
Aqui começa a
aparecer o conflito entre a face “virgem”, que Flor tenta assumir e a face
“puta”, que emerge, contra a vontade da personagem, em forma de desejo,
pensamentos e sonhos.
A “puta” é a
mulher metida na boemia e na orgia. Ela representa perigo para os homens, pois
pode deixa-los a qualquer momento, são mulheres que não pertencem a homem algum
e ao mesmo tempo pertencem a todos (Jacobina, 1996). Nesta categoria entra
também a mulher sedutora e dotada de desejo, ou que não tem a “cabeça fria”
para o sexo, como é esperado das senhoras de respeito (Salem, 2004). Esta
imagem feminina, descrita por Del Priore como a “piranha”, é vista com maus
olhos pela sociedade. Ela representa o prazer e o perigo. Prazer ligado ao
ideal de que “com ela tudo pode”, e perigo, pela insubordinação destas
“mulheres de vida fácil”, que não estão ligadas a homem algum e, portanto,
podem abandonar e desorganizar a vida social dos mesmos. Os homens “temem”, em
certa medida, estas mulheres, pois, elas têm o poder de destruir a sua imagem
masculina frente aos outros homens, traindo-os, ou abandonando-os.
Francisco Alves
e Orestes Barbosa descrevem a mulher “puta”, em sua música Abelha Rainha
Dourada abelha da ironia. Guizo de
alegria que traz saudade. Na sedução em que vivi não pressenti perversidade. E
na tua boca de serpente trescalando a rosas do Oriente bebi um dia esse veneno
que inebria. Foi o teu olhar. Foi o teu sorrir. Foi o teu pisar que me fez
sentir, que me fez chorar, que me fez vibrar. Eu sou na vida pro meu mal
sentimental. Tu no delírio do prazer a rir passas por mim só para me
ferir.Deste meu sofrer ria quem quiser. Vivo por ti, mulher! Meu violão é o
cofre em que guardei esta ilusão do tempo em que te amei. Hei de chorar perdido
assim de dor Cantando um sonho hei de morrer no horror nesta solidão sem
consolação chorando o meu amor.
Abelha da ironia (Francisco Alves e Orestes
Barbosa); 1933.
Flor se depara
com essa face de sua identidade nos braços do seu primeiro marido. Vadinho faz
despertar o desejo no corpo da moça séria e moral. Como esposa, Flor não
demonstra conflitos em aceitar esses sentimentos, mas assim que fica viúva ela
tenta enterrar o prazer carnal junto com seu marido. Por fora, viúva quase
santa, e por dentro mulher fogosa a “subir pelas paredes”. A protagonista
percebe que a única alternativa para não cair nos braços de qualquer homem e
salvar sua reputação e do seu finado esposo é o casamento. Pouco tempo depois
se casa com Teodoro. Seu segundo marido é um exemplo de moral, seriedade e
respeito, porém, ela não se sente sexualmente satisfeita e mais uma vez a
“puta” reivindica espaço e deleite.
Percebe-se ao
longo da obra que é muito difícil para a protagonista assumir a face descrita.
Ela só consegue viver essa identidade quando está resguardada da fofoca e dos
olhares dentro do casamento. O próprio substantivo “puta”, quando usado como
adjetivo é altamente pejorativo e vincula a imagem da mulher às profissionais
que fazem sexo por dinheiro, oferecendo seus corpos e provocando os homens. As
“mulheres honestas”, como Flor procura ser vista, não desejam estar vinculadas
a esse adjetivo. Na nossa sociedade a total liberdade sexual para as mulheres é
punida com fofocas, desqualificações, marginalização dos grupos “direitos”,
discriminação delas mesmas e de seus filhos, e, principalmente dificuldades de
se casar, por não serem consideradas como “moças sérias”. Assim, as mulheres se
resignam a esconder sua sexualidade em prol de um bom casamento e uma boa
imagem.
A última face
que iremos tratar é a “doméstica”, Del Priore a define como representante da
ordem, da família, do emprego e da monotonia cotidiana. Ela seria, nesse
conceito, a mulher passiva e submissa, voltada para o lar, a serviço do homem e
organizadora de suas relações sociais e cotidianas (Del Priore, 2006). Esta é a
identidade cobrada das mulheres desde o Brasil Colônia, com uma sexualidade
regrada e uma dedicação total ao lar e à família. O paradigma apresentado acima
é bem representado pela música Emília, de Wilson Barbosa e Haroldo Lobo
Eu quero uma mulher que saiba lavar e
cozinhar. Que, de manhã cedo, me acorde na hora de trabalhar. Só existe uma e
sem ela eu não vivo em paz. Emília, Emília, Emília eu não posso mais. Ninguém
sabe igual a ela preparar o meu café. Não desfazendo das outras, Emília é
mulher. Papai do céu é quem sabe a falta que ela me faz. Emília, Emília, Emília
eu não posso mais.
Emília (Wilson Barbosa e Haroldo Lobo);
1941.
Essa é a identidade mais cobrada das mulheres,
que poderíamos fazer uma analogia com o ideal hegemônico da masculinidade.
Felizmente, esse paradigma tem passado por transformações, devido,
principalmente, à Revolução Sexual e ao Movimento Feminista. Porém, essa visão
está longe de acabar, pois, a sociedade ainda reforça comportamentos “morais”,
que aproximam a mulher da doméstica, e pune outras formas de manifestação da
feminilidade, tornando o processo lento e doloroso para as que se rebelam
contra o ideal vigente.
Dona Flor representa, em seu primeiro
casamento, um tipo de “doméstica” mais específica, a “mulher de malandro”.
Segundo Eloá Jacobina, apesar de apanhar, ser traída, e ter que dar dinheiro ao
marido, a mulher de malandro ainda se envaidece da sua posição, com a
justificativa de ter uma vida de aventuras e sem rotina ao lado do patife
(Jacobina, 1996). Além disso, essas
mulheres recebem um grande reforço social conseguindo segurar ao seu lado um
homem admirado por todos e desejado pelas mais belas concorrentes. Deixo que
Heitor dos Prazeres faça a definição
Mulher de malandro sabe ser
carinhosa de verdade. Ela vive com tanto prazer. Quanto mais apanha a ele tem
amizade, longe dele tem saudade. Ela briga com o malandro. Enraivecida manda
ele andar. Ele se aborrece e desaparece. Ela sente saudade, vai procurar.
Muitas vezes ela chora mas não despreza o amor que tem. Sempre apanhando e se
lastimando, perto do malandro se sente bem.
Mulher de malandro (Heitor dos
Prazeres); 1931.
As Donas Flor
Tentarei
demonstrar agora que essas três faces são concomitantes na formação da
identidade de Dona Flor e da mulher.
Segundo Hall
(1987), citado na pesquisa de Caixeta e Barbato (2004) as identidades não são
fixas e permanentes, o termo é compreendido como instâncias dinâmicas e
dialógicas do desenvolvimento do EU, ou seja, no sentido de identificações “A identidade torna-se uma ‘celebração
móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”
(pp. 02). Essa constante transformação da identidade pode ser percebida ao
longo da história de Dona Flor. Respeitando os períodos de interseção entre as
identidades, a grosso modo, ela começa como solteira “virgem”, depois passa a
esposa “doméstica” (ou “mulher de malandro”), sente emergir a “puta”, na época
de privação da viuvez e, por fim, vive o conflito de sentir-se um misto de
todas as faces.
Essas mudanças
são descritas, por Ciampa, como próprias da identidade metamorfose. Para o
autor, identidade é movimento, desenvolvimento do concreto, crise, contradição,
mudança, transformação e superação dialética. Segundo ele é a supressão de uma
identidade pressuposta e o desenvolvimento da “alterização”, que é expressão de
outro “outro” (Ciampa, 1989).
O conceito
descrito acima se opõe ao que comumente esperamos das pessoas. Quando
convivemos com alguém, pressupomos que seu comportamento seja guiado por uma
“natureza” estanque a qual chamamos identidade. Essa visão social é
compreensível, visto que precisamos de um mínimo de previsão do comportamento
das pessoas com quem convivemos. Isso ocorre para podermos viver nessa
sociedade pautada em redes de produção, na qual uma pessoa sempre espera e
cobra da outra um grau de homogeneidade no modo de agir. Infelizmente, a
necessidade de segurança nos faz pressionar as pessoas a terem identidades
estanques, ou vestirem-se delas (Ciampa, 1989).
Assim, Flor entra em crise quando percebe que
não é apenas a dona de casa “honesta, o
exemplar comportamento, a decência, a respeitabilidade”. Essa dona honrada
se confunde com a austera, intransigente e oferecida, com pressa de se dar e
sem controle dos seus impulsos. Nesses períodos de interseção, nos quais as
faces femininas se sobrepõem e se confundem, Flor experimenta o caos de não se
ver como um ‘eu’ coerente (Rolnik, 1994). Hall (1999), citado na pesquisa de
Caixeta e Barbato (2004), defende que a formação da identidade do sujeito
perpassa justamente por esse caos vivido pela protagonista
O sujeito assume identidades diferentes em
diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’
coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes
direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas (pp. 02).
Como o que
ocorre muitas vezes no íntimo de nossos pensamentos a heroína chega a se
perguntar, “Qual das duas a verdadeira
dona Flor? A que fecha a porta com estrondo ou a que abre em silêncio, fresta a
fresta a porta de seu corpo?”.
Ciampa é quem
irá responder a indagação de Flor. Para ele somos como sementes. O grão é ao
mesmo tempo semente, planta desenvolvida, fruto e nova semente
Uma
multiplicidade que, naturalmente, já está contida na semente e que se
concretiza pela transformação em fruto, ou seja, pelo fazer-se outro para então
retornar a si mesmo (...). Pois a semente não permanece como semente para ser o
que é; ela precisa ser negada, morrer: uma semente que permanece
indefinidamente semente...não seria semente! Não germinaria, não seria negada;
ela precisa deixar de ser semente para ser plenamente semente... (Ciampa,
1989)
Assim, dona
Flor precisou abrir mão de ser apenas a dona de casa fiel, apenas a viúva
inalcançável, ou, até mesmo, apenas desejo e ânsia para conseguir ser uma
mulher inteira, composta por várias outras. É esta Dona Flor senhora de moral
inquestionável, esposa amorosa e fiel e, ao mesmo tempo, mulher repleta de gozo
e desejo.
A protagonista
acabou elaborando uma forma de responder as cobranças sociais sem abrir mão de
seus desejos. Dona Flor se abre para o novo, o diferente descrito por Rolnik, e
transforma sua posição de “sentinela zumbi”, seguidora cega e passiva das
regras, para “homem da ética”, ou melhor, mulher da ética, ativa, pensadora e
construtora das suas próprias leis (Rolnik, 1994). Assim, Flor burla as
punições sociais sofridas pela mulher com identidade “puta”, e recebe os
reforços proporcionados às “domésticas” e às “virgens” sem, contudo, abrir mão
de nenhuma das suas faces.
A identidade
metamorfose de Flor é o reflexo da identidade de todas as mulheres, amarradas
em complexas redes sociais de reforço e punição, fofoca e controle e de imagem
e desejo. Flor, e muitas senhoras de respeito, precisam se transformar em
borboletas para lograr a sociedade e viver seus desejos. Infelizmente, a
cultura ocidental ainda não aceita plenamente a manifestação da feminilidade
como desejo, força, independência e igualdade frente ao homem. Mas enquanto as
mulheres vão lutando por mudanças na mentalidade, elas encontram novas formas
de se expressar, apenas não podem aceitar como verdade as regras que lhes são
impostas, é preciso sempre pensar sobre as leis que regem o comportamento das
pessoas, ser sempre “mulher da ética” e nunca “sentinelas zumbi” (Rolnik,
1994).
Flor termina
como borboleta que aceita sua metamorfose. Completa e satisfeita com seus dois
maridos, cada um para uma das faces de sua identidade, formando, quem sabe, uma
masculinidade completa para suas necessidades. Seu Vivaldo da funerária comenta
ao vê-la passar de braço dado com Teodoro:
Reparem nela... Que formosura, que beleza de
mulher! Um peixão, e se vê que anda contente, que nada lhe falta nem na mesa
nem na cama. Até parece mulher de amante novo, pondo chifres no marido...para
um pedaço de mulher assim, tão rebolosa, é preciso muita competência.
E Flor vai
andando, de um lado Teodoro e do outro Vadinho.
Infelizmente, por viver em uma época posterior à de Jorge Amado, e ver
que as pessoas ainda tentam se enquadrar em identidades estanques, enterrar sua
sexualidade e seguir regras morais sem nem ao menos pensar nelas, não sei se
concordo quando ele termina sua obra nos dizendo que “Uma fogueira se acendeu na terra e o povo queimou o tempo da mentira”.
Mas fica expressa nessa frase um pouco do objetivo do meu trabalho, se ele não
eliminar toda a mentira, que ao menos coloque uma grande dúvida sobre ela.
Bibliografia
Amado, Jorge.
(1966). Dona Flor e Seus Dois Maridos.
Mestres da Literatura contemporânea. Rio de Janeiro e São Paulo: Record.
Baisoli-Alves,
Zélia Maria Mendes. (2000, Set-Dez). Psicologia: Teoria e Pesquisa. Continuidades
e Rupturas no Papel da Mulher Brasileira no Século XX, pp. 233-239.
Caixeta,
Juliana E. & Barbato, Silviane. (2004, 04 de maio). Identidade Feminina: um conceito complexo. Universidade de
Brasília. Distrito Federal.
Ciampa, Antônio
da Costa. (1989). “Identidade”. IN Sílvia Lane e Wanderley Codo (orgs), Psicologia Social: o homem em movimento.
(pp. 58-75). São Paulo: Brasiliense.
Cordeiro,
Rosineide de L. M. (2007). Gênero em Contextos Rurais: a liberdade de ir e vir
e o controle da sexualidade das mulheres no sertão de Pernambuco. Anais do XIV
encontro nacional da ABRAPSO.
Del Priore,
Mary. (2006). História do amor no Brasil.
São Paulo: Contexto.
Instituto
Moreira Salles (IMS)
Jacobina, Eloá
& Kuhner, Maria Helena. (1998) Feminino no imaginário de diferentes épocas.
Letras em canto-cantiga. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil.
Rolnik, Suely.
(1994)“Cidadania e alteridade: p psicólogo, o homem da ética e a reinvenção da
democracia”, IN Spink, Mary Jane (org.), A
cidadania em construção: Uma reflexão transdiciplinar. (pp.157-176) São
Paulo: Cortez Editora.
Salem, Tânia.
(2004). “Homem... já viu, né?”: representações sobre sexualidade e gênero entre
homens de classe popular. Em M.L. Heilborn (org). Família e Sexualidade. (pp. 15-61). Rio de Janeiro: Pallas.
Trindade, Z.A; Nascimento, A.R.A. (2005). O homossexual e a homofobia na construção da masculinidade hegemônica.
In: Trindade, Z. A; Souza, L (orgs). Violência e Exclusão: convivendo com
paradoxo. São Paulo: Casa do Psicólogo. P146-162.
Nenhum comentário:
Postar um comentário