quinta-feira, 29 de novembro de 2012

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS, OU SERÁ, AS DONAS FLOR E SEUS MARIDOS?



 “Mas Dona Flor já não sabia aconselhar ninguém,
 nem a si própria, perdida em confusão. 
Não era mais uma pessoa só e

igual, inteira e íntegra: estava dividida em duas, a honesta e
 a salafrária, seu reto espírito de um lado, do outro a matéria
 em ânsia. Um desacordo.”
Jorge Amado


Palavras-chave: Identidade, Estereótipos Femininos, Dona Flor e Seus Dois Maridos.

Introdução
Pretendo analisar a “identidade metamorfose” (Ciampa, 1989) e contraditória da personagem Dona Flor, protagonista da obra renomada de Jorge Amado, “Dona Flor e seus dois maridos”.
O objetivo deste trabalho é explorar a identificação controversa de Dona Flor, e com ela de todas as mulheres. Utilizarei para tanto, teorias de identidade e gênero, tendo como documento a obra literária de Jorge Amado e algumas letras de músicas contemporâneas ao tempo fictício da história.
A história de Jorge Amado é também a busca de Dona Flor por sua identidade, pois, a protagonista agrega em si as três faces femininas: a puta, a doméstica e a virgem (Jacobina, 1998) que em determinado momento fazem a personagem entrar em crise. A história termina quando Flor aceita um self, composto ao mesmo tempo de várias faces, nada estanque e nada estável, mas cheio de contradições e dialética (Ciampa, 1989).

A Obra
Dona Flor é uma mulher da mais inquestionável moral, discreta, trabalhadeira e criada para ser uma boa esposa, como era de costume entre as mulheres das décadas de quarenta e cinqüenta. A personagem apresenta uma grande preocupação ao longo da história com sua imagem, o que retrata a cobrança da sociedade sobre as mulheres desta época, impelidas a conter sua sexualidade, serem submissas, delicadas no trato, puras, ter capacidade de doação e saber prendas domésticas e habilidades manuais (Baisoli-Alves, 2000)
Seu primeiro marido, Vadinho, é um perfeito representante da malandragem. Adepto à jogatina batia ponto nos cassinos praticamente todas as noites e também não faltava aos cabarés e os bares. Nunca fez parte do seu itinerário o trabalho, chegando até mesmo a bater na mulher em busca de dinheiro para o jogo. Entretanto, como todo bom malandro, Vadinho também era tido em grande estima pelos companheiros e pelas mulheres. Os companheiros o admiravam pela sua simpatia e alegria contagiantes, já as “donzelas” o consideravam como um verdadeiro professor, na arte obscura sob os lençóis, (no caso de Vadinho, sem lençóis).
Vadinho é o representante de um tipo de masculinidade “alternativa”, o malandro. Ele não se encaixa totalmente no ideal de masculinidade norte-americana e brasileira descrita por Kimmel (1997) na citação de Nascimento e Trindade (2005). Esse ideal, chamado de masculinidade hegemônica, é caracterizado pelo “provedor, sexualmente ativo, rude, bem sucedido financeiramente e não emotivo” (Nascimento & Trindade, 2005). Entretanto, é possível perceber alguns traços descritos acima presentes em sua personalidade, como, a virilidade exacerbada, dentro e fora de casa. Também é característica deste personagem o apresso das pessoas do mesmo sexo, mostrando uma valorização da sua figura e um “jeitinho” malandro de sempre se dar bem.
O primeiro marido de Dona Flor morre no início da história, deixando-a viúva ainda moça, cheia de vida e ardendo em desejo. A partir desse momento começa a luta da personagem, dilacerada entre a moral e o desejo. A angústia só terá fim, quando Flor encontra seu segundo marido, o farmacêutico Teodoro.
Teodoro parece ser o oposto de Vadinho. Homem trabalhador, preocupado, gentil e apaixonado. Sem vícios, prefere ficar em casa a sair, e é incapaz de ser infiel, “para ele só existem duas coisas sagradas nesse mundo: dona Flor e a música. Pela esposa e pelo conto do fagote, se preciso fosse, sacrificaria a farmácia e benefícios, teses de ciência e seu conceito na sociedade. Homem direito, exemplo dos maridos.” Infelizmente o segundo também tem suas falhas, respeitador até de mais, organizado até de mais e provedor até de mais... Teodoro é o que a vizinhança irá chamar de o marido ideal, atencioso com a esposa, leva-a para o cinema, faz visitas a parentes e amigos e cumpre com modéstia suas obrigações.
Essa oposição entre os dois maridos pode nos levar a pensar que Teodoro teria uma masculinidade hegemônica, mas ele também possui um tipo de masculinidade subalterna. Apesar de ser um homem grande, autônomo, provedor, zeloso com a família e sentimentalmente contido, Teodoro não é viril, nem dentro nem fora de casa e não é bem visto pelos homens do bairro. Assim, podemos perceber que a masculinidade, assim como a feminilidade, se expressa de diversas formas e nunca alcança totalmente o padrão ideal, que seria a masculinidade hegemônica valorizada na sociedade americana atual (Nascimento e Trindade, 2005).
Dona Flor é feliz no segundo casamento, porém, algo lhe falta. Ela não é inteiramente satisfeita e completa. Um dia, depois de reclamar no íntimo a presença de Vadinho, ele retorna em espírito para satisfazer o desejo de Flor. Nossa protagonista então, se vê com dois maridos, com “direitos” iguais, segundo ela, e igualmente donos do seu desejo. Flor não sabe como proceder, estaria traindo Teodoro se ficasse com Vadinho? E Vadinho, ainda tinha algum direito? E ela, sua moral impecável e o respeito a seu devoto esposo? Como proteger sua imagem de boa esposa e a testa do seu santo marido, que corre tão grande risco de ser enfeitada com chifres, presentes do desejo?

Flor: doméstica, virgem e puta
A imagem feminina, ou a representação social da mulher é trabalhada por muitos estudiosos do gênero. Os principais estereótipos identificados são a “puta” e a “santa”, ou, na visão dos homens, a parceira “de casa”, “de fora” e a “da rua” (Salem, 2004). Trabalharei aqui com o conceito de Eloá Jacobina que identifica três identidades femininas nas letras de canto-cantiga, a “puta”, a “doméstica” e a “virgem” (Jacobina, 1998). Optei pela representação social da mulher na música, pois considero as letras como importante documento que nos permite analisar a sociedade dentro de sua cultura, e pretendo exemplificar algumas relações lançando mão desse material.
            Em alguns momentos pontuais da obra é possível verificar uma grande identificação de Flor com determinados estereótipos, mas conforme a história caminha para o fim estes acabam oscilando e coexistindo.
A primeira face feminina suscitada na história é a “virgem”. Ela condiz com imagem da mulher “onírica” do samba, descrita por Del Priore como a inexistente, ideal, pois é construída com imagens românticas (Del Priore, 2006). Estas imagens nos remetem à mulher do ultra-romantismo, impossível e etérea, descrita nos poemas de Álvares de Azevedo, “Ó minha amante, minha doce virgem, eu não te profanei, tu dormes pura: no sono do mistério, qual na vida, podes sonhar ainda na ventura.”(Azevedo, Virgem Morta).
Flor assume a identidade de “virgem” intocável quando ainda é solteira. Ela se mostra distante dos sentimentos e turbulências da adolescência não se preocupando com namorados e casamento, mesmo com a insistência de sua mãe Rozilda. Outro momento em que Flor assume essa postura é quando se torna viúva. Nesta circunstância, porém, há um movimento da própria Flor na intenção de “vestir essa roupagem”, que, ao seu ver, é própria de uma viúva de respeito. Essa movimentação da personagem pode ser entendida como uma resposta aos anseios da comunidade em que vive, como a protagonista não quer ficar “na boca do povo”, ou “mal falada” ela tenta sepultar seus desejos junto com o marido, no intuito de preservar o ideal de mulher direita, mulher de um homem só. Segundo Baisoli-Alves, esses mecanismos controle começam desde a infância e são exercidos por meio da ameaça de retirada de afeto, ameaça de abandono e solidão, castigo dos céus, remorso e culpa (Baisoli-Alves, 2000).
É interessante notar o caráter de controle social exercido pela fofoca, em que o medo da fala das companheiras modifica o comportamento de Flor e a induz a ser uma viúva de respeito (Cordeiro, 2007).
Aqui começa a aparecer o conflito entre a face “virgem”, que Flor tenta assumir e a face “puta”, que emerge, contra a vontade da personagem, em forma de desejo, pensamentos e sonhos.
A “puta” é a mulher metida na boemia e na orgia. Ela representa perigo para os homens, pois pode deixa-los a qualquer momento, são mulheres que não pertencem a homem algum e ao mesmo tempo pertencem a todos (Jacobina, 1996). Nesta categoria entra também a mulher sedutora e dotada de desejo, ou que não tem a “cabeça fria” para o sexo, como é esperado das senhoras de respeito (Salem, 2004). Esta imagem feminina, descrita por Del Priore como a “piranha”, é vista com maus olhos pela sociedade. Ela representa o prazer e o perigo. Prazer ligado ao ideal de que “com ela tudo pode”, e perigo, pela insubordinação destas “mulheres de vida fácil”, que não estão ligadas a homem algum e, portanto, podem abandonar e desorganizar a vida social dos mesmos. Os homens “temem”, em certa medida, estas mulheres, pois, elas têm o poder de destruir a sua imagem masculina frente aos outros homens, traindo-os, ou abandonando-os.
Francisco Alves e Orestes Barbosa descrevem a mulher “puta”, em sua música Abelha Rainha

Dourada abelha da ironia. Guizo de alegria que traz saudade. Na sedução em que vivi não pressenti perversidade. E na tua boca de serpente trescalando a rosas do Oriente bebi um dia esse veneno que inebria. Foi o teu olhar. Foi o teu sorrir. Foi o teu pisar que me fez sentir, que me fez chorar, que me fez vibrar. Eu sou na vida pro meu mal sentimental. Tu no delírio do prazer a rir passas por mim só para me ferir.Deste meu sofrer ria quem quiser. Vivo por ti, mulher! Meu violão é o cofre em que guardei esta ilusão do tempo em que te amei. Hei de chorar perdido assim de dor Cantando um sonho hei de morrer no horror nesta solidão sem consolação chorando o meu amor.
Abelha da ironia (Francisco Alves e Orestes Barbosa); 1933.

Flor se depara com essa face de sua identidade nos braços do seu primeiro marido. Vadinho faz despertar o desejo no corpo da moça séria e moral. Como esposa, Flor não demonstra conflitos em aceitar esses sentimentos, mas assim que fica viúva ela tenta enterrar o prazer carnal junto com seu marido. Por fora, viúva quase santa, e por dentro mulher fogosa a “subir pelas paredes”. A protagonista percebe que a única alternativa para não cair nos braços de qualquer homem e salvar sua reputação e do seu finado esposo é o casamento. Pouco tempo depois se casa com Teodoro. Seu segundo marido é um exemplo de moral, seriedade e respeito, porém, ela não se sente sexualmente satisfeita e mais uma vez a “puta” reivindica espaço e deleite.
Percebe-se ao longo da obra que é muito difícil para a protagonista assumir a face descrita. Ela só consegue viver essa identidade quando está resguardada da fofoca e dos olhares dentro do casamento. O próprio substantivo “puta”, quando usado como adjetivo é altamente pejorativo e vincula a imagem da mulher às profissionais que fazem sexo por dinheiro, oferecendo seus corpos e provocando os homens. As “mulheres honestas”, como Flor procura ser vista, não desejam estar vinculadas a esse adjetivo. Na nossa sociedade a total liberdade sexual para as mulheres é punida com fofocas, desqualificações, marginalização dos grupos “direitos”, discriminação delas mesmas e de seus filhos, e, principalmente dificuldades de se casar, por não serem consideradas como “moças sérias”. Assim, as mulheres se resignam a esconder sua sexualidade em prol de um bom casamento e uma boa imagem.
A última face que iremos tratar é a “doméstica”, Del Priore a define como representante da ordem, da família, do emprego e da monotonia cotidiana. Ela seria, nesse conceito, a mulher passiva e submissa, voltada para o lar, a serviço do homem e organizadora de suas relações sociais e cotidianas (Del Priore, 2006). Esta é a identidade cobrada das mulheres desde o Brasil Colônia, com uma sexualidade regrada e uma dedicação total ao lar e à família. O paradigma apresentado acima é bem representado pela música Emília, de Wilson Barbosa e Haroldo Lobo

Eu quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar. Que, de manhã cedo, me acorde na hora de trabalhar. Só existe uma e sem ela eu não vivo em paz. Emília, Emília, Emília eu não posso mais. Ninguém sabe igual a ela preparar o meu café. Não desfazendo das outras, Emília é mulher. Papai do céu é quem sabe a falta que ela me faz. Emília, Emília, Emília eu não posso mais.
Emília (Wilson Barbosa e Haroldo Lobo); 1941.

 Essa é a identidade mais cobrada das mulheres, que poderíamos fazer uma analogia com o ideal hegemônico da masculinidade. Felizmente, esse paradigma tem passado por transformações, devido, principalmente, à Revolução Sexual e ao Movimento Feminista. Porém, essa visão está longe de acabar, pois, a sociedade ainda reforça comportamentos “morais”, que aproximam a mulher da doméstica, e pune outras formas de manifestação da feminilidade, tornando o processo lento e doloroso para as que se rebelam contra o ideal vigente.
 Dona Flor representa, em seu primeiro casamento, um tipo de “doméstica” mais específica, a “mulher de malandro”. Segundo Eloá Jacobina, apesar de apanhar, ser traída, e ter que dar dinheiro ao marido, a mulher de malandro ainda se envaidece da sua posição, com a justificativa de ter uma vida de aventuras e sem rotina ao lado do patife (Jacobina, 1996).  Além disso, essas mulheres recebem um grande reforço social conseguindo segurar ao seu lado um homem admirado por todos e desejado pelas mais belas concorrentes. Deixo que Heitor dos Prazeres faça a definição

Mulher de malandro sabe ser carinhosa de verdade. Ela vive com tanto prazer. Quanto mais apanha a ele tem amizade, longe dele tem saudade. Ela briga com o malandro. Enraivecida manda ele andar. Ele se aborrece e desaparece. Ela sente saudade, vai procurar. Muitas vezes ela chora mas não despreza o amor que tem. Sempre apanhando e se lastimando, perto do malandro se sente bem.
Mulher de malandro (Heitor dos Prazeres); 1931.

           
As Donas Flor
            Tentarei demonstrar agora que essas três faces são concomitantes na formação da identidade de Dona Flor e da mulher.
Segundo Hall (1987), citado na pesquisa de Caixeta e Barbato (2004) as identidades não são fixas e permanentes, o termo é compreendido como instâncias dinâmicas e dialógicas do desenvolvimento do EU, ou seja, no sentido de identificações “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (pp. 02). Essa constante transformação da identidade pode ser percebida ao longo da história de Dona Flor. Respeitando os períodos de interseção entre as identidades, a grosso modo, ela começa como solteira “virgem”, depois passa a esposa “doméstica” (ou “mulher de malandro”), sente emergir a “puta”, na época de privação da viuvez e, por fim, vive o conflito de sentir-se um misto de todas as faces. 
Essas mudanças são descritas, por Ciampa, como próprias da identidade metamorfose. Para o autor, identidade é movimento, desenvolvimento do concreto, crise, contradição, mudança, transformação e superação dialética. Segundo ele é a supressão de uma identidade pressuposta e o desenvolvimento da “alterização”, que é expressão de outro “outro” (Ciampa, 1989).
O conceito descrito acima se opõe ao que comumente esperamos das pessoas. Quando convivemos com alguém, pressupomos que seu comportamento seja guiado por uma “natureza” estanque a qual chamamos identidade. Essa visão social é compreensível, visto que precisamos de um mínimo de previsão do comportamento das pessoas com quem convivemos. Isso ocorre para podermos viver nessa sociedade pautada em redes de produção, na qual uma pessoa sempre espera e cobra da outra um grau de homogeneidade no modo de agir. Infelizmente, a necessidade de segurança nos faz pressionar as pessoas a terem identidades estanques, ou vestirem-se delas (Ciampa, 1989).  
 Assim, Flor entra em crise quando percebe que não é apenas a dona de casa “honesta, o exemplar comportamento, a decência, a respeitabilidade”. Essa dona honrada se confunde com a austera, intransigente e oferecida, com pressa de se dar e sem controle dos seus impulsos. Nesses períodos de interseção, nos quais as faces femininas se sobrepõem e se confundem, Flor experimenta o caos de não se ver como um ‘eu’ coerente (Rolnik, 1994). Hall (1999), citado na pesquisa de Caixeta e Barbato (2004), defende que a formação da identidade do sujeito perpassa justamente por esse caos vivido pela protagonista

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas (pp. 02).

Como o que ocorre muitas vezes no íntimo de nossos pensamentos a heroína chega a se perguntar, “Qual das duas a verdadeira dona Flor? A que fecha a porta com estrondo ou a que abre em silêncio, fresta a fresta a porta de seu corpo?”.
Ciampa é quem irá responder a indagação de Flor. Para ele somos como sementes. O grão é ao mesmo tempo semente, planta desenvolvida, fruto e nova semente

 Uma multiplicidade que, naturalmente, já está contida na semente e que se concretiza pela transformação em fruto, ou seja, pelo fazer-se outro para então retornar a si mesmo (...). Pois a semente não permanece como semente para ser o que é; ela precisa ser negada, morrer: uma semente que permanece indefinidamente semente...não seria semente! Não germinaria, não seria negada; ela precisa deixar de ser semente para ser plenamente semente... (Ciampa, 1989) 

Assim, dona Flor precisou abrir mão de ser apenas a dona de casa fiel, apenas a viúva inalcançável, ou, até mesmo, apenas desejo e ânsia para conseguir ser uma mulher inteira, composta por várias outras. É esta Dona Flor senhora de moral inquestionável, esposa amorosa e fiel e, ao mesmo tempo, mulher repleta de gozo e desejo.
A protagonista acabou elaborando uma forma de responder as cobranças sociais sem abrir mão de seus desejos. Dona Flor se abre para o novo, o diferente descrito por Rolnik, e transforma sua posição de “sentinela zumbi”, seguidora cega e passiva das regras, para “homem da ética”, ou melhor, mulher da ética, ativa, pensadora e construtora das suas próprias leis (Rolnik, 1994). Assim, Flor burla as punições sociais sofridas pela mulher com identidade “puta”, e recebe os reforços proporcionados às “domésticas” e às “virgens” sem, contudo, abrir mão de nenhuma das suas faces.
A identidade metamorfose de Flor é o reflexo da identidade de todas as mulheres, amarradas em complexas redes sociais de reforço e punição, fofoca e controle e de imagem e desejo. Flor, e muitas senhoras de respeito, precisam se transformar em borboletas para lograr a sociedade e viver seus desejos. Infelizmente, a cultura ocidental ainda não aceita plenamente a manifestação da feminilidade como desejo, força, independência e igualdade frente ao homem. Mas enquanto as mulheres vão lutando por mudanças na mentalidade, elas encontram novas formas de se expressar, apenas não podem aceitar como verdade as regras que lhes são impostas, é preciso sempre pensar sobre as leis que regem o comportamento das pessoas, ser sempre “mulher da ética” e nunca “sentinelas zumbi” (Rolnik, 1994).
Flor termina como borboleta que aceita sua metamorfose. Completa e satisfeita com seus dois maridos, cada um para uma das faces de sua identidade, formando, quem sabe, uma masculinidade completa para suas necessidades. Seu Vivaldo da funerária comenta ao vê-la passar de braço dado com Teodoro:

Reparem nela... Que formosura, que beleza de mulher! Um peixão, e se vê que anda contente, que nada lhe falta nem na mesa nem na cama. Até parece mulher de amante novo, pondo chifres no marido...para um pedaço de mulher assim, tão rebolosa, é preciso muita competência.

E Flor vai andando, de um lado Teodoro e do outro Vadinho.
Infelizmente, por viver em uma época posterior à de Jorge Amado, e ver que as pessoas ainda tentam se enquadrar em identidades estanques, enterrar sua sexualidade e seguir regras morais sem nem ao menos pensar nelas, não sei se concordo quando ele termina sua obra nos dizendo que “Uma fogueira se acendeu na terra e o povo queimou o tempo da mentira”. Mas fica expressa nessa frase um pouco do objetivo do meu trabalho, se ele não eliminar toda a mentira, que ao menos coloque uma grande dúvida sobre ela.

Disponível em  http://www.fafich.ufmg.br/atividadeseafetos/trabalhoscompletos.php .

Bibliografia
Amado, Jorge. (1966). Dona Flor e Seus Dois Maridos. Mestres da Literatura contemporânea. Rio de Janeiro e São Paulo: Record.
Baisoli-Alves, Zélia Maria Mendes. (2000, Set-Dez). Psicologia: Teoria e Pesquisa. Continuidades e Rupturas no Papel da Mulher Brasileira no Século XX, pp. 233-239.
Caixeta, Juliana E. & Barbato, Silviane. (2004, 04 de maio). Identidade Feminina: um conceito complexo. Universidade de Brasília. Distrito Federal.
Ciampa, Antônio da Costa. (1989). “Identidade”. IN Sílvia Lane e Wanderley Codo (orgs), Psicologia Social: o homem em movimento. (pp. 58-75). São Paulo: Brasiliense.
Cordeiro, Rosineide de L. M. (2007). Gênero em Contextos Rurais: a liberdade de ir e vir e o controle da sexualidade das mulheres no sertão de Pernambuco. Anais do XIV encontro nacional da ABRAPSO.
Del Priore, Mary. (2006). História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto.
Instituto Moreira Salles (IMS)
Jacobina, Eloá & Kuhner, Maria Helena. (1998) Feminino no imaginário de diferentes épocas. Letras em canto-cantiga. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Rolnik, Suely. (1994)“Cidadania e alteridade: p psicólogo, o homem da ética e a reinvenção da democracia”, IN Spink, Mary Jane (org.), A cidadania em construção: Uma reflexão transdiciplinar. (pp.157-176) São Paulo: Cortez Editora.
Salem, Tânia. (2004). “Homem... já viu, né?”: representações sobre sexualidade e gênero entre homens de classe popular. Em M.L. Heilborn (org). Família e Sexualidade. (pp. 15-61). Rio de Janeiro: Pallas.
Trindade, Z.A; Nascimento, A.R.A. (2005). O homossexual e a homofobia na construção da masculinidade hegemônica. In: Trindade, Z. A; Souza, L (orgs). Violência e Exclusão: convivendo com paradoxo. São Paulo: Casa do Psicólogo. P146-162. 

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