quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O ATO AGRESSIVO COMO POSSIBILIDADE TÁTICA NA OFICINA DE QUADRINHOS


Aline Souza Martins
Andréa Máris Campos Guerra

Disponível em: http://www.psicopatologiafundamental.org/uploads/files/v_congresso/mr_45_-_aline_souza_martins_e_andrea_m._c._guerra.pdf

Na devolução da pesquisa “A incidência da figura paterna na subjetividade de 
adolescentes envolvidos com a criminalidade”, promovemos uma oficina de quadrinhos 
com jovens envolvidos com o tráfico. Sua metodologia incluiu a construção do enredo, 
personagens e storyboard de uma revista de quadrinhos. Feito uma banda de moebius, a 
dimensão política, determinada pelos fatores materiais e econômicos, e a dimensão 
subjetiva, determinada pelo inconsciente, são o lado e o avesso de uma mesma posição 
que refere o sujeito ao Outro. É na torção que os acontecimentos poderiam determinar 
tomadas de posição.  O tráfico representa a posição de fixar-se na dialética 
agressividade/idealização por meio da aderência aos semblantes oferecidos pelas 
insígnias fálicas e gadgets. A oficina de quadrinhos, por outro lado, pode ser entendida 
como um ultrapassamento que transforma o ato agressivo e a repetição alienada em um 
ato criativo, com potencial para romper com a posição definida em relação ao Outro  que 
coloca os jovens com o corpo para a morte na “guerra”.
Financiamento: FAPEMIG, PROPPG/UFMG.



A EXPERIÊNCIA DA OFICINA DE QUADRINHOS OU A METOLODOGIA
A fim de realizarmos a devolução de dados da pesquisa “A incidência da figura paterna na subjetividade de adolescentes envolvidos com a criminalidade”, financiada pela PROPPG/UFMG e pela FAPEMIG a quem devemos agradecer pelo apoio de toda a pesquisa e da nossa viagem para esse congresso, promovemos junto ao Programa de Controle de Homicídios Fica Vivo! da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais uma oficina de quadrinhos com jovens envolvidos com o tráfico em um aglomerado urbano e bem central, da cidade de Belo Horizonte (MG). Os jovens que participaram mais ativamente da fase da coleta de dados estavam presos, mortos ou foragidos, assim sendo, a devolutiva aconteceu com novo grupo de rapazes mais jovens, sendo que conhecíamos apenas um deles da fase anterior, acontecida há menos de um ano.
A pesquisa coletou dados através de grupos de conversações psicanalíticas (SANTIAGO, 2009) em três regiões desse aglomerado, selecionadas dada a alta incidência de homicídios entre jovens e a acessibilidade aos pontos de venda de drogas ilícitas pelo Programa Fica Vivo!, parceiro da investigação. Em cada região, os jovens se alternavam na participação, havendo sempre algumas presenças constantes. Coletamos os dados durante o segundo semestre de 2010, abordando em cada região cerca de 15 jovens, num total de cerca de 45. Foram registradas entre três a cinco conversações em áudio em cada região, apesar da cerca de uma dezena ou dúzia de visitas aos locais selecionados. Os jovens receberam pseudônimos, não tendo sido identificados, conforme exigência do Comitê de Ética que aprovou a realização da pesquisa. Esse material gravado foi posteriormente transcrito e submetidos à análise de discurso, apoiada em Lacan (1957) e Pêcheux (2008).
No segundo semestre de 2011, a fim de realizar a devolução dos dados analisados aos jovens, realizamos oficina de quadrinhos em uma das regiões, envolvendo cerca de doze jovens, com a coordenação de dois profissionais e um aluno da psicologia e dois artistas quadrinistas. Sua metodologia incluiu a construção do enredo de uma revista de quadrinhos, com construção dos personagens, story board e trama, tendo sido utilizados recursos como filmes, raps, visita a atelier de quadrinho, pesquisas na internet entre outras, culminando na confecção e apresentação pelos jovens de um vídeo em evento universitário e na exposição da história dos quadrinhos. Pois bem, o que essa metodologia nos ensina no trabalho com os jovens? Antes de respondê-lo, entendamos sua lógica.

A FAIXA DE MOEBIUS OU A LÓGICA DO MÉTODO
Lacan apresenta a faixa ou banda de moebius em seu seminário “A identificação”(1961-62), assinalando a divisão do sujeito que o expõe ao mais íntimo que, por estar moebianamente articulado ao campo do Outro, o expõe ao espaço público. Lacan identifica o sujeito ao corte que a faixa de moebius apresenta. Em sua essência, a banda é o próprio corte, podendo, por isso, ser tomada como suporte estrutural da
constituição do sujeito, pensado como dividido. É o elemento temporal que permite situar o ponto de corte. Vejamos sua representação abaixo.
Fig 1. Faixa ou Banda de Moebius
É na torção, responsável pela inversão desses dois planos, que os acontecimentos determinam tomadas de posição em que esses dois lados colidem, interferindo nas respostas que o sujeito constrói ao longo de sua vida. A dimensão política aqui é tomada como teoria estratégica que trata da finalidade de uma prática discursiva, enquanto a dimensão subjetiva é tomada enquanto inconsciente estruturado como linguagem. Para os jovens da oficina de quadrinhos, a dimensão política estaria relacionada a um ato que rompesse o ciclo repetitivo que os reenvia a posição paradoxal de exclusão incluída, relacionada a estrutura de poder a qual estamos todos submetidos pelo discurso capitalista. Na dimensão subjetiva, porquanto inconsciente, estaria relacionada ao corte que institui um antes e um depois, modificando a posição do sujeito quanto à forma de obter satisfação e se posicionar face ao Outro, ganhando valor de acontecimento-sujeito.
Pela torção da banda de Moebius, portanto, há uma resposta a ser dada que depende simultaneamente da subjetividade e da política dos jovens em questão. O tráfico representa a posição de fixar-se na dialética agressividade/idealização por meio da aderência aos semblantes oferecidos pelas insígnias fálicas e gadgets. A oficina de quadrinhos, por outro lado, pode ser entendida como um ultrapassamento alternativo que transforma o ato agressivo e a repetição alienada em um ato criativo com potencial para romper com a posição definida pelo Outro que leva muitas vezes a morte, a Guerra.

ENTRELACES ENTRE A DIMENSÃO INCONSCIENTE E A DIMENSÃO POLÍTICA
Assim como a revolução árabe foi possível através da indignação que fez laço pelas músicas dos rappers e promoveu mudança (PERES, 2011), o potencial de ato dos
jovens do tráfico, quando não reprimido, pode ser aproveitado como uma luta legítima e necessária de resistência à tirania. A oficina de quadrinhos, nessa lógica, colocaria o ato agressivo no laço social fazendo-o produzir uma política que operaria ao avesso do discurso capitalista com potencial para fazer a torção da exclusão, pois introduz um desvio na circularidade do discurso usando a agressividade na arte para promover o laço dos pares no morro. Aspecto fundamental para pensar a psicanálise no campo das políticas públicas, em especial no da segurança pública e dos direitos humanos.
Tomemos, em primeiro plano, a premissa de que a violência pode servir à destruição, mas também que é necessária e pode ser dirigida à construção da civilização, assim se fazem as revoluções no plano político e se engaja a pulsão de morte (gozo) no plano inconsciente, que se torna, então, ligada a um objeto ou ideal. No que toca à dimensão inconsciente, Freud (mal estar) nos lembra, que é necessária certa cota de agressividade na própria construção da civilização. Diante da dualidade pulsional que propõe, pulsão de vida e pulsão de morte, ele nos explica que não se trata apenas de ligação e de destruição respectivamente, mas antes de um amálgama entre as duas modalidades pulsionais, tal como a tinta preta lançada sobre a branca. Ele não propõe um modelo maniqueísta em que a pulsão de vida estaria a favor da vida e a pulsão de morte dirigida à desconexão apenas. É necessária a relação de empuxo entre as duas para que se tenha um modelo de equilíbrio de forças, pois, isoladas, tanto a pulsão de vida quanto a de morte levariam mais rapidamente o corpo ao fim (êxtase ou nirvana ou morte). Assim, a luta e a competição são necessárias ao desenvolvimento da vida coletiva, exigindo uma quota de agressividade para se realizarem. É difícil para o homem abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão (FREUD, 1930 [1929], p. 136).
Para exemplificar a aplicação desses conceitos no âmbito social tomamos o movimento Occupy, no qual há uma tomada da discussão que se abre pelo negativo, pela recusa do modelo de vida imposto pelo discurso do capitalista.
Devemos resistir precisamente a uma tradução assim apressada da energia das manifestações para um conjunto de demandas pragmáticas “concretas”. Sim, os protestos realmente criaram um vazio – um vazio no campo da ideologia harmônica -, e será necessário algum tempo para preenchê-lo de maneira apropriada posto que se trata de um vazio que carrega consigo um embrião, uma abertura para o verdadeiro Novo”(p.18).
O “não”, que caracteriza as formas de resistência ao poder ganha, na psicanálise, uma forma específica (a Verneinung) que nos leva a complexificar o processo
subjetivo aí em jogo. Para a psicanálise, o “não” é uma espécie de atestado da incidência do inconsciente, um “made in inconsciente”, como brinca Freud. Quando, pois, negamos com veemência uma relação, um objeto, um ideal, pode ser que ele esteja, exatamente, articulado no plano inconsciente a uma forma de resposta ao que desejamos. Assim, a título de exemplo, tomemos o caso de uma feminista. Ela afirma a todo tempo sua adesão aos princípios libertadores sustentados por seu ideal político, mas, ao mesmo tempo, sacrifica-se a todo momento pelo marido e pelos filhos, não sendo capaz sequer de adquirir objetos de necessidade básica para si mesma. A voz que lhe vinha quando pensava em fazê-lo era a da mãe dizendo-lhe “toda mulher tem que se carificar por sua família”. Assim, seu “não” político encontrava-se atravessado e submetido pela ingerência do supereu materno, traduzindo-se por um “sim” aos ditames maternos mais íntimos que a habitavam. Na perspectiva do plano inconsciente, assim, o “não” (ou die Verneinung), constitui um modo de tomar conhecimento daquilo a que o sujeito não acede, ao que está fora de seu alcance cognitivo ou consciente (o que está recalcado). (Trata-se de uma suspensão do recalque, mas nem por isso uma aceitação do recalcado) Trata-se de uma suspensão do juízo ou da censura, que permite ao sujeito acessar elementos inconscientes, mas ao preço de denegá-los, evidenciando que a função intelectual está separada do processo afetivo. “A Verneinung é da ordem do discurso, e concerne ao que somos capazes de fazer vir à tona por uma via articulada” (LACAN, 1955-56/1992, p. 101).
As formas de resistência política podem também engendrar o novo, produzindo a superação do status quo, rompendo com o instituído e engendrando o novo. Com a ocupação e o “não” dos jovens há a tomada de um compromisso político, e com ele a esperança de que esse ato produza algo novo. O ato agressivo, no sentido de uma energia que é usada para romper com uma posição de equilíbrio, pode ser visto como uma das marcas da juventude e da adolescência. No contexto social esse ato pode ser visto como impulso a mobilizações políticas, como foram: a resistência às ditaduras do Brasil, da Argentina e, mais recente, a Primavera Árabe. No nível individual, como vimos, é preciso um ato por parte do adolescente que diante da castração constrói um novo nome para si, a partir do qual ele irá romper com as relações endógenas da família e procurar no laço social uma posição para si.
Assim, também, no plano inconsciente o trabalho da fala permite dar forma pela palavra (significante) ao vazio central (das Ding) que, sem contorno, devasta e avassala o sujeito. Tal qual no trabalho do oleiro, que forja um contorno de argila dando forma ao vazio central do vaso; assim também o sujeito, ao modelar o significante (a palavra/a representação), introduz na realidade uma tela que circunscreve sua posição no mundo e exclui outras, sendo impulsionado, a partir de então, por essa conformação. O reencontro com essa dimensão do vazio, com o real (tyché), rompe com o circuito repetitivo de satisfação (automaton), obtido pela fórmula originária (fórmula da fantasia) que o sujeito encontrou para jogar com ela na cena social, permitindo novas formulações sobre seu ser e suas relações com os objetos e ideais. Assim, a produção do novo como acontecimento que rompe o circuito da repetição (significante) (chamado automaton, pela psicanálise,) se realiza a partir do encontro com o real, (chamado tyché) com uma dimensão não articulada, não prevista e inesperada, que surpreende o sujeito e instala novo circuito para a satisfação. Esse (re)encontro afeta, portanto, os dois planos simultaneamente, implicando em nova tomada de posição subjetiva e política.


CONCLUSÃO
Assim, o ato dos jovens não deve ser tratado de uma maneira asséptica, como se a sociedade não necessitasse de algo da ordem da violência para se modificar. Ela não deve ser reprimida, e sim direcionada para ações estratégicas que modifiquem a estrutura social. Nesse sentido, alguns teóricos têm pensado a violência ou o ato não em uma perspectiva que os contrapõe a paz, mas como um potencial para a mudança (Dunker e Propheta, 2012). Benjamim chama de “violência divina” uma decisão, seja está de matar ou de arriscar perder a própria vida, tomada sem nenhuma cobertura do Outro. Safatle defende o ato revolucionário como aquele que admite a indeterminação no qual um sujeito pode reconhecer em si próprio um outro. Alain Badiou chama de “paixão do Real” a lógica de que se alguém defende a igualdade, os direitos humanos e a liberdade não deve se esquivar da coragem de fazer valer esses princípios.
Nesse sentido algumas manifestações populares já vêm ocorrendo antes mesmo que a Primavera Árabe relembrasse que a luta política ainda pode existir. O movimento dos MCs na cidade de Belo Horizonte/MG ocupou o centro velho da cidade para a promoção do “Duelo de MCs”. Essa iniciativa leva para o “asfalto” a linguagem e cultura da população marginalizada. Através de duelos de rep os jovens da periferia fazem discussões políticas sobre a música, a exclusão, o ambiente (Rio + 20), os espaços, a
educação e o que mais for de interesse deles ou estrategicamente interessante para o movimento. Esse tipo de manifestação criativa leva em consideração a subjetividade dos manifestantes expondo não só suas marcas culturais como também suas formas de gozo. Na torção pode-se perceber também o caráter político, expresso pelo valor econômico e social da possibilidade de entrada na discussão quanto ao modo de governo ao qual eles também são submetidos.
Assim também oficina de quadrinhos pode ser entendida como a busca por um ultrapassamento que transforma o ato agressivo direcionado ao outro, jovem da boca rival, e a repetição alienada da guerra em um ato criativo com potencial para romper com a posição definida pelo Outro. Se tomarmos o fenômeno social do ato agressivo dos jovens de periferia através do crime é possível pensar que esse ato pode ser entendido como elemento de propulsão de mudanças táticas para atingir a estratégia de modificação da posição imposta pelo discurso capitalista. Nesse sentido, ambos os grupos, movimentos de periferia e as revoltas de 2011, se encontram submetidos a mesma política da ideologia capitalista e as mesmas relações de poder da estratégia, entretanto as táticas de resistência adotadas são diferentes. Para os que estão sobre o asfalto a tática é ocupar o asfalto, para os que estão no morro a violência acaba como agressividade, sendo desviado do Outro para atingir o outro. Ou seja, é como se em Toten e Tabu (1913) os irmãos resolvessem atingir uns aos outros lutando por suas reivindicações e não o Pai da Horda.
Para que uma revolta possa romper com as posições pré-determinadas de grupos na sociedade é preciso que o ato agressivo seja capaz de fazer laço e ter um objetivo político determinado que seja possível através das estratégias. Podemos entender que uma das interfaces da entrada na guerra do tráfico é a busca de melhores condições de vida, que consistem na saída desse lugar de vida nua representado pela figura do homo sacer. Os jovens relatam que diante do desamparo do Estado nas favelas, em que a polícia não sobe para fazer a proteção de uns contra os outros, eles precisam se armar para defenderem suas mães, irmãs, filhos, pais e etc. Essa busca não deixa de ser uma busca política, entretanto ao pegar em armas para atingir a estratégia de mudar as relações de poder se empodeirando eles se voltam contra os inimigos da outra favela ou da boca rival, assim a tática fracassa, pois é desviada voltando a cumprir os ideais da política em que estão submersos.
O desvio desse ato agressivo para respostas que façam laço social pode funcionar como possibilidade de criação de novas perguntas a serem feitas. Segundo Zizek (2012)
Devemos tratar as reivindicações dos protestos de Wall Streat de maneira semelhante: intelectuais não devem tomá-las inicialmente como reivindicações e questões para as quais precisam produzir respostas claras e programas sobre o que fazer. Elas são respostas, e os intelectuais deveriam propor as questões para elas. A situação é como a da psicanálise, em que o paciente sabe a resposta (seus sintomas), mas não sabe a que ela responde, e o analista deve formular a questão. Apenas por meio desse trabalho paciente surgirá um programa (p. 25).
Com a aplicação dessa lógica metodológica foi possível pensar a dimensão política, determinada pelos fatores materiais e econômicos e a dimensão subjetiva, determinada pelo inconsciente, como uma banda de Moebius, o lado e o avesso de uma mesma posição que refere o sujeito ao Outro. Como quadrinho, que irá circular por todo o morro, pretende-se fazer circular o ato agressivo fazendo laço entre os pares de forma a que se torne possível que uma nova pergunta se inscreva, tanto no contexto histórico e social de extermínio desses jovens, como na singularidade de cada um deles. É nossa aposta.



BIBLIOGRAFIA
AGAMBEN, G. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. BeloHorizonte: Editora UFMG, 2010.
DUNKER, C. Por uma psicopatologia não-toda (apostila). São Paulo, 2010. DUNKER, C. L. PROPHETA, B. O Capitão Nascimento nas mãos de Robespierre: a violência divina e o abismo do ato político. Disponível em http://zagaiaemrevista.com.br/o-capitao-nascimento-nas-maos-de-robespierre-a-violencia-divina-e-o-abismo-do-ato-politico/. Acesso em 31 de ago 2012.
FREUD, S. (1930). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago, 1974.
LACAN, J (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder de 1958. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, Jacques. Seminário IX (1961/1962) – A Identificação. Jorge Zahar Editor
PÊCHEUX, Michel. O Discurso: Estrutura ou Acontecimento. Campinas: Ponte, 1997 e MILLER, Jacques-Alain. O osso de uma análise. Salvador; Biblioteca/Agente, 1998.
PERES, M. F. A AL-Jazeera das ruas. Em Cult: Dossiê Mundo Árabe. Ano 14, N. 156, 2011. P.26-27.
SANTIAGO, A. L. B. Psicanálise aplicada ao campo da educação: intervenção sobre a desinserção social na escola. In: SANTOS, T. C. (Org.). Inovações no ensino e na pesquisa em psicanálise aplicada. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2009a, v. 1, p. 67-83.
ZIZEK, S. O violento silêncio de um novo começo. In Occupy. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012.

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS, OU SERÁ, AS DONAS FLOR E SEUS MARIDOS?



 “Mas Dona Flor já não sabia aconselhar ninguém,
 nem a si própria, perdida em confusão. 
Não era mais uma pessoa só e

igual, inteira e íntegra: estava dividida em duas, a honesta e
 a salafrária, seu reto espírito de um lado, do outro a matéria
 em ânsia. Um desacordo.”
Jorge Amado


Palavras-chave: Identidade, Estereótipos Femininos, Dona Flor e Seus Dois Maridos.

Introdução
Pretendo analisar a “identidade metamorfose” (Ciampa, 1989) e contraditória da personagem Dona Flor, protagonista da obra renomada de Jorge Amado, “Dona Flor e seus dois maridos”.
O objetivo deste trabalho é explorar a identificação controversa de Dona Flor, e com ela de todas as mulheres. Utilizarei para tanto, teorias de identidade e gênero, tendo como documento a obra literária de Jorge Amado e algumas letras de músicas contemporâneas ao tempo fictício da história.
A história de Jorge Amado é também a busca de Dona Flor por sua identidade, pois, a protagonista agrega em si as três faces femininas: a puta, a doméstica e a virgem (Jacobina, 1998) que em determinado momento fazem a personagem entrar em crise. A história termina quando Flor aceita um self, composto ao mesmo tempo de várias faces, nada estanque e nada estável, mas cheio de contradições e dialética (Ciampa, 1989).

A Obra
Dona Flor é uma mulher da mais inquestionável moral, discreta, trabalhadeira e criada para ser uma boa esposa, como era de costume entre as mulheres das décadas de quarenta e cinqüenta. A personagem apresenta uma grande preocupação ao longo da história com sua imagem, o que retrata a cobrança da sociedade sobre as mulheres desta época, impelidas a conter sua sexualidade, serem submissas, delicadas no trato, puras, ter capacidade de doação e saber prendas domésticas e habilidades manuais (Baisoli-Alves, 2000)
Seu primeiro marido, Vadinho, é um perfeito representante da malandragem. Adepto à jogatina batia ponto nos cassinos praticamente todas as noites e também não faltava aos cabarés e os bares. Nunca fez parte do seu itinerário o trabalho, chegando até mesmo a bater na mulher em busca de dinheiro para o jogo. Entretanto, como todo bom malandro, Vadinho também era tido em grande estima pelos companheiros e pelas mulheres. Os companheiros o admiravam pela sua simpatia e alegria contagiantes, já as “donzelas” o consideravam como um verdadeiro professor, na arte obscura sob os lençóis, (no caso de Vadinho, sem lençóis).
Vadinho é o representante de um tipo de masculinidade “alternativa”, o malandro. Ele não se encaixa totalmente no ideal de masculinidade norte-americana e brasileira descrita por Kimmel (1997) na citação de Nascimento e Trindade (2005). Esse ideal, chamado de masculinidade hegemônica, é caracterizado pelo “provedor, sexualmente ativo, rude, bem sucedido financeiramente e não emotivo” (Nascimento & Trindade, 2005). Entretanto, é possível perceber alguns traços descritos acima presentes em sua personalidade, como, a virilidade exacerbada, dentro e fora de casa. Também é característica deste personagem o apresso das pessoas do mesmo sexo, mostrando uma valorização da sua figura e um “jeitinho” malandro de sempre se dar bem.
O primeiro marido de Dona Flor morre no início da história, deixando-a viúva ainda moça, cheia de vida e ardendo em desejo. A partir desse momento começa a luta da personagem, dilacerada entre a moral e o desejo. A angústia só terá fim, quando Flor encontra seu segundo marido, o farmacêutico Teodoro.
Teodoro parece ser o oposto de Vadinho. Homem trabalhador, preocupado, gentil e apaixonado. Sem vícios, prefere ficar em casa a sair, e é incapaz de ser infiel, “para ele só existem duas coisas sagradas nesse mundo: dona Flor e a música. Pela esposa e pelo conto do fagote, se preciso fosse, sacrificaria a farmácia e benefícios, teses de ciência e seu conceito na sociedade. Homem direito, exemplo dos maridos.” Infelizmente o segundo também tem suas falhas, respeitador até de mais, organizado até de mais e provedor até de mais... Teodoro é o que a vizinhança irá chamar de o marido ideal, atencioso com a esposa, leva-a para o cinema, faz visitas a parentes e amigos e cumpre com modéstia suas obrigações.
Essa oposição entre os dois maridos pode nos levar a pensar que Teodoro teria uma masculinidade hegemônica, mas ele também possui um tipo de masculinidade subalterna. Apesar de ser um homem grande, autônomo, provedor, zeloso com a família e sentimentalmente contido, Teodoro não é viril, nem dentro nem fora de casa e não é bem visto pelos homens do bairro. Assim, podemos perceber que a masculinidade, assim como a feminilidade, se expressa de diversas formas e nunca alcança totalmente o padrão ideal, que seria a masculinidade hegemônica valorizada na sociedade americana atual (Nascimento e Trindade, 2005).
Dona Flor é feliz no segundo casamento, porém, algo lhe falta. Ela não é inteiramente satisfeita e completa. Um dia, depois de reclamar no íntimo a presença de Vadinho, ele retorna em espírito para satisfazer o desejo de Flor. Nossa protagonista então, se vê com dois maridos, com “direitos” iguais, segundo ela, e igualmente donos do seu desejo. Flor não sabe como proceder, estaria traindo Teodoro se ficasse com Vadinho? E Vadinho, ainda tinha algum direito? E ela, sua moral impecável e o respeito a seu devoto esposo? Como proteger sua imagem de boa esposa e a testa do seu santo marido, que corre tão grande risco de ser enfeitada com chifres, presentes do desejo?

Flor: doméstica, virgem e puta
A imagem feminina, ou a representação social da mulher é trabalhada por muitos estudiosos do gênero. Os principais estereótipos identificados são a “puta” e a “santa”, ou, na visão dos homens, a parceira “de casa”, “de fora” e a “da rua” (Salem, 2004). Trabalharei aqui com o conceito de Eloá Jacobina que identifica três identidades femininas nas letras de canto-cantiga, a “puta”, a “doméstica” e a “virgem” (Jacobina, 1998). Optei pela representação social da mulher na música, pois considero as letras como importante documento que nos permite analisar a sociedade dentro de sua cultura, e pretendo exemplificar algumas relações lançando mão desse material.
            Em alguns momentos pontuais da obra é possível verificar uma grande identificação de Flor com determinados estereótipos, mas conforme a história caminha para o fim estes acabam oscilando e coexistindo.
A primeira face feminina suscitada na história é a “virgem”. Ela condiz com imagem da mulher “onírica” do samba, descrita por Del Priore como a inexistente, ideal, pois é construída com imagens românticas (Del Priore, 2006). Estas imagens nos remetem à mulher do ultra-romantismo, impossível e etérea, descrita nos poemas de Álvares de Azevedo, “Ó minha amante, minha doce virgem, eu não te profanei, tu dormes pura: no sono do mistério, qual na vida, podes sonhar ainda na ventura.”(Azevedo, Virgem Morta).
Flor assume a identidade de “virgem” intocável quando ainda é solteira. Ela se mostra distante dos sentimentos e turbulências da adolescência não se preocupando com namorados e casamento, mesmo com a insistência de sua mãe Rozilda. Outro momento em que Flor assume essa postura é quando se torna viúva. Nesta circunstância, porém, há um movimento da própria Flor na intenção de “vestir essa roupagem”, que, ao seu ver, é própria de uma viúva de respeito. Essa movimentação da personagem pode ser entendida como uma resposta aos anseios da comunidade em que vive, como a protagonista não quer ficar “na boca do povo”, ou “mal falada” ela tenta sepultar seus desejos junto com o marido, no intuito de preservar o ideal de mulher direita, mulher de um homem só. Segundo Baisoli-Alves, esses mecanismos controle começam desde a infância e são exercidos por meio da ameaça de retirada de afeto, ameaça de abandono e solidão, castigo dos céus, remorso e culpa (Baisoli-Alves, 2000).
É interessante notar o caráter de controle social exercido pela fofoca, em que o medo da fala das companheiras modifica o comportamento de Flor e a induz a ser uma viúva de respeito (Cordeiro, 2007).
Aqui começa a aparecer o conflito entre a face “virgem”, que Flor tenta assumir e a face “puta”, que emerge, contra a vontade da personagem, em forma de desejo, pensamentos e sonhos.
A “puta” é a mulher metida na boemia e na orgia. Ela representa perigo para os homens, pois pode deixa-los a qualquer momento, são mulheres que não pertencem a homem algum e ao mesmo tempo pertencem a todos (Jacobina, 1996). Nesta categoria entra também a mulher sedutora e dotada de desejo, ou que não tem a “cabeça fria” para o sexo, como é esperado das senhoras de respeito (Salem, 2004). Esta imagem feminina, descrita por Del Priore como a “piranha”, é vista com maus olhos pela sociedade. Ela representa o prazer e o perigo. Prazer ligado ao ideal de que “com ela tudo pode”, e perigo, pela insubordinação destas “mulheres de vida fácil”, que não estão ligadas a homem algum e, portanto, podem abandonar e desorganizar a vida social dos mesmos. Os homens “temem”, em certa medida, estas mulheres, pois, elas têm o poder de destruir a sua imagem masculina frente aos outros homens, traindo-os, ou abandonando-os.
Francisco Alves e Orestes Barbosa descrevem a mulher “puta”, em sua música Abelha Rainha

Dourada abelha da ironia. Guizo de alegria que traz saudade. Na sedução em que vivi não pressenti perversidade. E na tua boca de serpente trescalando a rosas do Oriente bebi um dia esse veneno que inebria. Foi o teu olhar. Foi o teu sorrir. Foi o teu pisar que me fez sentir, que me fez chorar, que me fez vibrar. Eu sou na vida pro meu mal sentimental. Tu no delírio do prazer a rir passas por mim só para me ferir.Deste meu sofrer ria quem quiser. Vivo por ti, mulher! Meu violão é o cofre em que guardei esta ilusão do tempo em que te amei. Hei de chorar perdido assim de dor Cantando um sonho hei de morrer no horror nesta solidão sem consolação chorando o meu amor.
Abelha da ironia (Francisco Alves e Orestes Barbosa); 1933.

Flor se depara com essa face de sua identidade nos braços do seu primeiro marido. Vadinho faz despertar o desejo no corpo da moça séria e moral. Como esposa, Flor não demonstra conflitos em aceitar esses sentimentos, mas assim que fica viúva ela tenta enterrar o prazer carnal junto com seu marido. Por fora, viúva quase santa, e por dentro mulher fogosa a “subir pelas paredes”. A protagonista percebe que a única alternativa para não cair nos braços de qualquer homem e salvar sua reputação e do seu finado esposo é o casamento. Pouco tempo depois se casa com Teodoro. Seu segundo marido é um exemplo de moral, seriedade e respeito, porém, ela não se sente sexualmente satisfeita e mais uma vez a “puta” reivindica espaço e deleite.
Percebe-se ao longo da obra que é muito difícil para a protagonista assumir a face descrita. Ela só consegue viver essa identidade quando está resguardada da fofoca e dos olhares dentro do casamento. O próprio substantivo “puta”, quando usado como adjetivo é altamente pejorativo e vincula a imagem da mulher às profissionais que fazem sexo por dinheiro, oferecendo seus corpos e provocando os homens. As “mulheres honestas”, como Flor procura ser vista, não desejam estar vinculadas a esse adjetivo. Na nossa sociedade a total liberdade sexual para as mulheres é punida com fofocas, desqualificações, marginalização dos grupos “direitos”, discriminação delas mesmas e de seus filhos, e, principalmente dificuldades de se casar, por não serem consideradas como “moças sérias”. Assim, as mulheres se resignam a esconder sua sexualidade em prol de um bom casamento e uma boa imagem.
A última face que iremos tratar é a “doméstica”, Del Priore a define como representante da ordem, da família, do emprego e da monotonia cotidiana. Ela seria, nesse conceito, a mulher passiva e submissa, voltada para o lar, a serviço do homem e organizadora de suas relações sociais e cotidianas (Del Priore, 2006). Esta é a identidade cobrada das mulheres desde o Brasil Colônia, com uma sexualidade regrada e uma dedicação total ao lar e à família. O paradigma apresentado acima é bem representado pela música Emília, de Wilson Barbosa e Haroldo Lobo

Eu quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar. Que, de manhã cedo, me acorde na hora de trabalhar. Só existe uma e sem ela eu não vivo em paz. Emília, Emília, Emília eu não posso mais. Ninguém sabe igual a ela preparar o meu café. Não desfazendo das outras, Emília é mulher. Papai do céu é quem sabe a falta que ela me faz. Emília, Emília, Emília eu não posso mais.
Emília (Wilson Barbosa e Haroldo Lobo); 1941.

 Essa é a identidade mais cobrada das mulheres, que poderíamos fazer uma analogia com o ideal hegemônico da masculinidade. Felizmente, esse paradigma tem passado por transformações, devido, principalmente, à Revolução Sexual e ao Movimento Feminista. Porém, essa visão está longe de acabar, pois, a sociedade ainda reforça comportamentos “morais”, que aproximam a mulher da doméstica, e pune outras formas de manifestação da feminilidade, tornando o processo lento e doloroso para as que se rebelam contra o ideal vigente.
 Dona Flor representa, em seu primeiro casamento, um tipo de “doméstica” mais específica, a “mulher de malandro”. Segundo Eloá Jacobina, apesar de apanhar, ser traída, e ter que dar dinheiro ao marido, a mulher de malandro ainda se envaidece da sua posição, com a justificativa de ter uma vida de aventuras e sem rotina ao lado do patife (Jacobina, 1996).  Além disso, essas mulheres recebem um grande reforço social conseguindo segurar ao seu lado um homem admirado por todos e desejado pelas mais belas concorrentes. Deixo que Heitor dos Prazeres faça a definição

Mulher de malandro sabe ser carinhosa de verdade. Ela vive com tanto prazer. Quanto mais apanha a ele tem amizade, longe dele tem saudade. Ela briga com o malandro. Enraivecida manda ele andar. Ele se aborrece e desaparece. Ela sente saudade, vai procurar. Muitas vezes ela chora mas não despreza o amor que tem. Sempre apanhando e se lastimando, perto do malandro se sente bem.
Mulher de malandro (Heitor dos Prazeres); 1931.

           
As Donas Flor
            Tentarei demonstrar agora que essas três faces são concomitantes na formação da identidade de Dona Flor e da mulher.
Segundo Hall (1987), citado na pesquisa de Caixeta e Barbato (2004) as identidades não são fixas e permanentes, o termo é compreendido como instâncias dinâmicas e dialógicas do desenvolvimento do EU, ou seja, no sentido de identificações “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (pp. 02). Essa constante transformação da identidade pode ser percebida ao longo da história de Dona Flor. Respeitando os períodos de interseção entre as identidades, a grosso modo, ela começa como solteira “virgem”, depois passa a esposa “doméstica” (ou “mulher de malandro”), sente emergir a “puta”, na época de privação da viuvez e, por fim, vive o conflito de sentir-se um misto de todas as faces. 
Essas mudanças são descritas, por Ciampa, como próprias da identidade metamorfose. Para o autor, identidade é movimento, desenvolvimento do concreto, crise, contradição, mudança, transformação e superação dialética. Segundo ele é a supressão de uma identidade pressuposta e o desenvolvimento da “alterização”, que é expressão de outro “outro” (Ciampa, 1989).
O conceito descrito acima se opõe ao que comumente esperamos das pessoas. Quando convivemos com alguém, pressupomos que seu comportamento seja guiado por uma “natureza” estanque a qual chamamos identidade. Essa visão social é compreensível, visto que precisamos de um mínimo de previsão do comportamento das pessoas com quem convivemos. Isso ocorre para podermos viver nessa sociedade pautada em redes de produção, na qual uma pessoa sempre espera e cobra da outra um grau de homogeneidade no modo de agir. Infelizmente, a necessidade de segurança nos faz pressionar as pessoas a terem identidades estanques, ou vestirem-se delas (Ciampa, 1989).  
 Assim, Flor entra em crise quando percebe que não é apenas a dona de casa “honesta, o exemplar comportamento, a decência, a respeitabilidade”. Essa dona honrada se confunde com a austera, intransigente e oferecida, com pressa de se dar e sem controle dos seus impulsos. Nesses períodos de interseção, nos quais as faces femininas se sobrepõem e se confundem, Flor experimenta o caos de não se ver como um ‘eu’ coerente (Rolnik, 1994). Hall (1999), citado na pesquisa de Caixeta e Barbato (2004), defende que a formação da identidade do sujeito perpassa justamente por esse caos vivido pela protagonista

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas (pp. 02).

Como o que ocorre muitas vezes no íntimo de nossos pensamentos a heroína chega a se perguntar, “Qual das duas a verdadeira dona Flor? A que fecha a porta com estrondo ou a que abre em silêncio, fresta a fresta a porta de seu corpo?”.
Ciampa é quem irá responder a indagação de Flor. Para ele somos como sementes. O grão é ao mesmo tempo semente, planta desenvolvida, fruto e nova semente

 Uma multiplicidade que, naturalmente, já está contida na semente e que se concretiza pela transformação em fruto, ou seja, pelo fazer-se outro para então retornar a si mesmo (...). Pois a semente não permanece como semente para ser o que é; ela precisa ser negada, morrer: uma semente que permanece indefinidamente semente...não seria semente! Não germinaria, não seria negada; ela precisa deixar de ser semente para ser plenamente semente... (Ciampa, 1989) 

Assim, dona Flor precisou abrir mão de ser apenas a dona de casa fiel, apenas a viúva inalcançável, ou, até mesmo, apenas desejo e ânsia para conseguir ser uma mulher inteira, composta por várias outras. É esta Dona Flor senhora de moral inquestionável, esposa amorosa e fiel e, ao mesmo tempo, mulher repleta de gozo e desejo.
A protagonista acabou elaborando uma forma de responder as cobranças sociais sem abrir mão de seus desejos. Dona Flor se abre para o novo, o diferente descrito por Rolnik, e transforma sua posição de “sentinela zumbi”, seguidora cega e passiva das regras, para “homem da ética”, ou melhor, mulher da ética, ativa, pensadora e construtora das suas próprias leis (Rolnik, 1994). Assim, Flor burla as punições sociais sofridas pela mulher com identidade “puta”, e recebe os reforços proporcionados às “domésticas” e às “virgens” sem, contudo, abrir mão de nenhuma das suas faces.
A identidade metamorfose de Flor é o reflexo da identidade de todas as mulheres, amarradas em complexas redes sociais de reforço e punição, fofoca e controle e de imagem e desejo. Flor, e muitas senhoras de respeito, precisam se transformar em borboletas para lograr a sociedade e viver seus desejos. Infelizmente, a cultura ocidental ainda não aceita plenamente a manifestação da feminilidade como desejo, força, independência e igualdade frente ao homem. Mas enquanto as mulheres vão lutando por mudanças na mentalidade, elas encontram novas formas de se expressar, apenas não podem aceitar como verdade as regras que lhes são impostas, é preciso sempre pensar sobre as leis que regem o comportamento das pessoas, ser sempre “mulher da ética” e nunca “sentinelas zumbi” (Rolnik, 1994).
Flor termina como borboleta que aceita sua metamorfose. Completa e satisfeita com seus dois maridos, cada um para uma das faces de sua identidade, formando, quem sabe, uma masculinidade completa para suas necessidades. Seu Vivaldo da funerária comenta ao vê-la passar de braço dado com Teodoro:

Reparem nela... Que formosura, que beleza de mulher! Um peixão, e se vê que anda contente, que nada lhe falta nem na mesa nem na cama. Até parece mulher de amante novo, pondo chifres no marido...para um pedaço de mulher assim, tão rebolosa, é preciso muita competência.

E Flor vai andando, de um lado Teodoro e do outro Vadinho.
Infelizmente, por viver em uma época posterior à de Jorge Amado, e ver que as pessoas ainda tentam se enquadrar em identidades estanques, enterrar sua sexualidade e seguir regras morais sem nem ao menos pensar nelas, não sei se concordo quando ele termina sua obra nos dizendo que “Uma fogueira se acendeu na terra e o povo queimou o tempo da mentira”. Mas fica expressa nessa frase um pouco do objetivo do meu trabalho, se ele não eliminar toda a mentira, que ao menos coloque uma grande dúvida sobre ela.

Disponível em  http://www.fafich.ufmg.br/atividadeseafetos/trabalhoscompletos.php .

Bibliografia
Amado, Jorge. (1966). Dona Flor e Seus Dois Maridos. Mestres da Literatura contemporânea. Rio de Janeiro e São Paulo: Record.
Baisoli-Alves, Zélia Maria Mendes. (2000, Set-Dez). Psicologia: Teoria e Pesquisa. Continuidades e Rupturas no Papel da Mulher Brasileira no Século XX, pp. 233-239.
Caixeta, Juliana E. & Barbato, Silviane. (2004, 04 de maio). Identidade Feminina: um conceito complexo. Universidade de Brasília. Distrito Federal.
Ciampa, Antônio da Costa. (1989). “Identidade”. IN Sílvia Lane e Wanderley Codo (orgs), Psicologia Social: o homem em movimento. (pp. 58-75). São Paulo: Brasiliense.
Cordeiro, Rosineide de L. M. (2007). Gênero em Contextos Rurais: a liberdade de ir e vir e o controle da sexualidade das mulheres no sertão de Pernambuco. Anais do XIV encontro nacional da ABRAPSO.
Del Priore, Mary. (2006). História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto.
Instituto Moreira Salles (IMS)
Jacobina, Eloá & Kuhner, Maria Helena. (1998) Feminino no imaginário de diferentes épocas. Letras em canto-cantiga. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Rolnik, Suely. (1994)“Cidadania e alteridade: p psicólogo, o homem da ética e a reinvenção da democracia”, IN Spink, Mary Jane (org.), A cidadania em construção: Uma reflexão transdiciplinar. (pp.157-176) São Paulo: Cortez Editora.
Salem, Tânia. (2004). “Homem... já viu, né?”: representações sobre sexualidade e gênero entre homens de classe popular. Em M.L. Heilborn (org). Família e Sexualidade. (pp. 15-61). Rio de Janeiro: Pallas.
Trindade, Z.A; Nascimento, A.R.A. (2005). O homossexual e a homofobia na construção da masculinidade hegemônica. In: Trindade, Z. A; Souza, L (orgs). Violência e Exclusão: convivendo com paradoxo. São Paulo: Casa do Psicólogo. P146-162. 

“O DESEJO TRISTE DE VOLTAR”: AMOR E SAUDADE NA CANÇÃO BRASILEIRA (1927 – 2010).


“O DESEJO TRISTE DE VOLTAR”: AMOR E SAUDADE NA CANÇÃO BRASILEIRA (1927 – 2010).


Adriano Roberto Afonso do Nascimento
Aline Souza Martins
Ana Beraldo de Carvalho
Bárbara Gonçalves Mendes
Gregório Ribeiro de Miranda
Nicole Corte Lagazzi




A investigação aqui apresentada teve como objetivo explorar o modo como a saudade amorosa é retratada no cancioneiro do nosso país, buscando identificar quais foram as nossas referências mais estáveis para a veiculação desse objeto/sentimento ao longo dos últimos 80 anos. Com esse objetivo, foram submetidas ao software ALCESTE 934 letras de canções brasileiras compostas e/ou gravadas entre 1927-2010. Como resultado desse procedimento, obtivemos as seguintes classes: “Não tem jeito de esquecer você”; “Sofrer, chorar”; “Canto triste” e “Enchendo de trevas a natureza”. Procuramos discutir o conjunto desses resultados a partir de 03 pontos: o caráter impositivo da lembrança do ser amado, a agudeza do sofrimento do saudoso e o transbordamento do sentimento saudoso do sujeito para o ambiente.
Palavras-chave: saudade; amor; memória social; música popular brasileira.

Trabalho completo em: 

http://www.jirs2011.com.br/jirs2011/ers2012/ERS2012Volume1COMPLETO.pdf

"Nessa interface cotidiano/produção cultural, o Romantismo, outra importante referência para as nossas formas de dizer/sentir/praticar o amor,  a partir do  final do Século XVIII, na esteira de uma crescente valorização da  intimidade/individualidade, passa a ditar as regras do que poderia ser denominada como uma sensibilidade romântica (LEITE, 2007; D’INCAO, 1989). Fundamental para essa sensibilidade é, sem dúvida, a exacerbação de um certo tom nostálgico a matizar os homens e a natureza que os cerca. Especificamente para nós, brasileiros, é a saudade reconhecida como sentimento a partir do qual se poderia ler o mundo. Talvez devêssemos mesmo dizer que ela passa definitivamente a ser reconhecida de forma “oficial” como componente entre nós no que Vincent-Buffault (1988) denomina, a partir de outro contexto, “código de comunicação sensível” (p. 32)."

A SAUDADE AMOROSA NA CANÇÃO BRASILEIRA:Um estudo exploratório (1927-1964)

Esse artigo lindo publicamos em 2009. Foram escutadas, transcritas e analisadas 458 letras de canções populares brasileiras com o tema da saudade amorosa. A dificuldade em realizar essa pesquisa foi lidar com a própria saudade potencializada pelas lindas canções de Ataulfo Alvez, Dorical Caymmi e Lupicínio Rodrigues.

Segue o link para o trabalho completo:
http://www2.pucpr.br/reol/index.php/PA?dd1=2785&dd99=view



A SAUDADE AMOROSA NA CANÇÃO BRASILEIRA: Um estudo exploratório (1927-1964)1


Saudade - love and long in Brazilian lyrics: An exploratory study (1927-1964)

Adriano Roberto Afonso do Nascimento, Aline Souza Martins

O objetivo da investigação aqui relatada foi buscar mapear a utilização do termo saudade em um
corpus formado por trechos de 458 letras de canções populares brasileiras compostas e/ou gravadas
entre 1927 e 1964 e que possuíam como tema a relação amorosa. Tal corpus foi submetido à análise
lexical realizada pelo software ALCESTE (Analyse Lexicale par Context d’un Ensemble de Segments de
Texte). Como resultado desse procedimento, obtivemos a formação de cinco classes de formas
reduzidas: a) saudade, sujeito movente; b) os porquês (a mulher, o tempo e o sentimento
compartilhado); c) coração (onde moram o amor e a saudade); d) sonhar com teu corpo, esperar dia
e noite e; e) a saudade em mim. Procurou-se, na discussão desses resultados, a elaboração de um
esquema que pudesse captar a complexidade da dinâmica do amor e da saudade no amante saudoso,
de modo a proporcionar uma possível chave interpretativa para futuros estudos sobre o tema.
Palavras-chave: Saudade. Análise lexical. Psicologia social.



"Fundamental para essa sensibilidade é, sem dúvida, a exacerbação de um certo tom nostálgico a matizar os homens e a natureza que os cerca. Especificamente para nós, brasileiros, é a saudade reconhecida como sentimento a partir do qual se poderia ler o mundo.4 Talvez devêssemos mesmo dizer que ela passa definitivamente a ser reconhecida de forma “oficial” como componente entre nós no que Vincent-Buffault (1988, p. 32) denomina, a partir de outro contexto, “código de comunicação sensível”.